Entrevistas
|
8 de março de 2014
|
12:19

Flávia Schilling: “O exílio deixa marcas, mostra como o ‘enraizamento’ é frágil”

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Flavia Schilling: no exílio conviveu com muitos "ex". Depois disso, nunca mais se fascinou, temeu ou reverenciou quem "ocupa lugares de poder" | Foto: Álbum de Família
Flavia Schilling: no exílio conviveu com muitos “ex”. Depois disso, nunca mais se fascinou, temeu ou reverenciou quem “ocupa lugares de poder” | Foto: Álbum de Família

Nubia Silveira

Quem já chegou perto dos 50 anos acompanhou a grande campanha feita no país para libertar a brasileira Flávia Schilling, presa no Uruguai. Ela se tornou o rosto das mulheres que resistiam aos regimes ditatoriais nos países do Cone Sul e conseguiu voltar ao Brasil em 1980, depois de mais de sete anos de prisão.

A gaúcha Flávia, nascida em Santa Cruz do Sul, em 28 de abril de 1953, cresceu numa família politizada. Como ela própria lembra, no Memorial apresentado para o concurso de livre-docência na área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP: “Marcante foi o dia em que meu pai saiu de casa para ficar no Palácio Piratini, com Brizola, na ‘luta pela legalidade’. Foi a única vez em que vi meu pai armado: era a luta para que João Goulart assumisse a presidência do Brasil.”

Paulo Schilling | Foto: Rperodução
Paulo Schilling | Foto: Rperodução

Seu pai era Paulo Schilling, jornalista e assessor do ex-governador Leonel Brizola. Ele e todos os liderados por Brizola, em 1961, saíram vitoriosos da resistência ao golpe para impedir que o vice-presidente João Goulart assumisse a presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros. Três anos depois, porém, veio a derrota. Poucos dias após o Comício da Central do Brasil, os militares tomaram o poder. Como outros brasileiros, Paulo Schilling precisou sair do país. Exilou-se no Uruguai.

“Tenho duas memórias fortes do Rio: no dia do comício do dia 13 de março de 1964, o Comício da Central do Brasil, com a população da zona sul, em peso, acendendo velas nas esquinas e nas casas contra a ameaça comunista. Que opressão, que constrangimento sentia, que sensação de isolamento, de sermos minoria! Não era apenas a classe média moradora do Leblon, mas também os moradores da favela próxima à Rua Carlos Góis (onde morávamos) que acendiam as velas e oravam. Havia clima de golpe no ar.

“No dia do golpe, esta cena se repete: as janelas dos apartamentos ficaram cheias de bandeiras do Brasil, de panos brancos, saudando a “revolução” vitoriosa. Não compreendíamos totalmente estas questões, mas víamos e ouvíamos: lições para toda a vida.” (Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP)

Aos 11 anos, Flávia seguiu o pai, viajando logo depois, ao lado da mãe e das três irmãs. Os primeiros tempos desta nova vida não foram fáceis. Era preciso adaptar-se a uma nova cultura, dominar outro idioma, conhecer melhor a cidade e fazer novos amigos. Nesse tempo de exílio, compreendeu “a efemeridade do ‘poder’”.

“Convivíamos com muitos “ex”: ex-presidente, ex-governador, ex-ministro, ex-reitor da UnB. Um mundo ‘ex’. Isso marca, indelevelmente, minha relação com ‘o’ poder. Nunca mais me fascinei, temi, encarei com temor ou reverência quem – de forma sempre tão precária e instável – ocupa lugares de poder. Isso é muito bom.” (Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP)

Sete anos depois, em 1971, Flávia ingressa na Faculdade de Medicina, de Montevidéu. Naquele ano, o presidente uruguaio, Juan Maria Bordaberry, dissolve o Parlamento e institui uma ditadura civil-militar no país. Surge então a Frente Ampla em oposição ao regime. E a brasileira se divide entre duas paixões: a medicina e a militância. “Foi uma das decisões mais difíceis de minha vida: quase não tinha mais liberdade para optar, quase não foi uma decisão. Precisei passar para a clandestinidade em abril de 1972”, lembra ela no MemorialFlavia Schilling - Querida Família

Na noite do dia 24 de novembro de 1972, na Avenida 8 de Octubre, em Montevidéu, ela e seu companheiro foram presos, depois de terem sido seguidos por policiais do Exército à paisana, como contou Paulo Schilling, no texto Flávia Schilling, por seu pai, no livro Querida Família. Foi baleada no pescoço. Ela lembra:

“A polícia chegou, não sabia do que se tratava, enquadrou o agressor, foi informada da situação, fui levada ao hospital militar. Lá fiquei durante um mês, com a traqueotomia, uma lenta e difícil recuperação, quase sem poder falar, durante um longo tempo.”

Ficou detida por cinco anos na prisão feminina em Punta Rieles. Durante dois anos esteve na condição de refém, sendo levada de um quartel a outro, na capital uruguaia. Em Querida Liberdade, outro livro que reúne as cartas que enviou da prisão, um texto dos editores fala sobre as condições em que viveu no cárcere: “regime de calabouço, incomunicação total, humilhações e provocações de todo o tipo (inclusive em duas oportunidades tremendos castigos corporais), transferências constantes e sem prévio aviso de um quartel para outro”.

“O calabouço é pequeno, calculo que 1,5 m por 2,5 m. Tenho uma cama, um armário pequeno que serve de mesa, e uma cadeira. Há espaço para caminhar (cinco passos, ida e volta, cinco passos). As paredes estão pintadas de azul, teto branco, uma janelinha com oito vidros pequenos, cobertos com tinta branca, pelos quais brinco de adivinhar como está o dia, que cor terá o céu. Por um dos vidros, vejo uma árvore. Acho que quando sair vou sentir terror aos espaços abertos e às multidões (se continuo muito tempo aqui). Não temos recreio, e só saímos do isolamento para ir ao banheiro. Tomamos banho uma vez por semana, porque aqui não há água quente e é preciso levar-nos à enfermaria” (carta enviada da prisão de Florida, quarta-feira, 3 de julho de 73, publicada em Querida Liberdade)

As cartas, o tricô, o cigarro e as conversas com as companheiras ajudaram a enfrentar os dias de solidão. A última carta pública foi a que escreveu em São Paulo, no dia 21 de abril de 1980, em agradecimento aos brasileiros. Hoje, prefere os e-mails.

“Esta carta é muito especial: hoje estou sentada em minha casa; já passou tudo (passou?), deparo-me agora, reaprendendo a vida cotidiana, o diálogo, a espontaneidade, todas as pequenas coisas (assim como aprender a abrir uma porta e a tratar com naturalidade uma criança, tudo isso depois de 7 anos e meio), insegura em muitos aspectos, porém, lutando para que o medo à liberdade nunca seja mais forte do que o amor a ela. O mais importante para afugentar os fantasmas do medo são vocês.” (Carta ao povo brasileiro)

Flávia na chegada ao Brasil | Foto: Reprodução
Flávia na chegada ao Brasil | Foto: Reprodução

Libertada em 7 de abril de 1980, voou para São Paulo. O Brasil vivia o governo do general João Baptista Figueiredo. Foi preciso – mais uma vez – recomeçar, readaptar-se, definir a vida.

“Tempos realmente difíceis, com a ditadura e a repressão ainda presentes no cotidiano. Tempos confusos, de transição (que nunca se completava), de dúvidas e solidão. Os que chegavam, os exilados, com aquela energia indescritível que ainda possuíam, tentavam se situar em um país totalmente outro. Que país é este? Como entrar no país? Quem é quem? O que vale, o que não vale mais? Foram tempos de luta, também. Muitos, como nós, chegamos apenas com as malas, com pouca coisa ou coisa nenhuma. Cheguei, literalmente, com a roupa do corpo. Foi o grande desafio de refazer a vida ou fazer a vida.” (Memorial, USP)

Na capital paulista, Flávia fez sua vida. Teve o filho Pedro, trocou a medicina pela sociologia, trabalhou no Cento de Referência e Apoio à Vítima, assessorou a Comissão da Mulher do Parlamento Latino-americano, participou do Observatório de Direitos Humanos do Mercosul e ingressou como professora na Faculdade de Educação da USP, onde atua ainda hoje. Nesse tempo, orientou 35 trabalhos de conclusão de curso, monografias de especialização, iniciações científicas e teses de mestrado e doutorado. Escreveu 32 artigos, 21 capítulos de livros e nove livros, assinados ou organizados por ela, além de outros textos publicados em anais de congressos e revistas.

Hoje, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Sul21 publica esta entrevista com Flávia Schilling, uma das muitas resistentes às ditaduras. Ela preferiu responder por e-mail.

“A palavra resistência sempre é ambígua. Não se espere encontrar, nas instituições ou em nós aquele ‘diamante puro da resistência’. Vamos nos lembrar que a resistência é algo que se dá no enfrentamento, no face a face, nas relações do poder e é permeada de contradições e ambiguidades. A resistência é uma crítica a uma lógica de determinado sistema, sempre comporta uma crítica a certo sistema.” (Memória da Resistência ou a Resistência como Construção da Memória, publicado no volume 3 da coleção A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, editado pela Assembleia Legislativa do RS)

"O exilado vive com as malas prontas e de olho no que acontece no seu país de origem, pensando na volta"
“O exilado vive com as malas prontas e de olho no que acontece no seu país de origem, pensando na volta”

Sul 21– O que significou para uma pré-adolescente viver exilada? Qual a grande marca que o exílio deixou em você?
Flávia Schilling– Cheguei ao Uruguai com 11 anos e foi muito difícil. O exílio é uma situação difícil não apenas para os protagonistas (no caso, o meu pai, Paulo Schilling, com uma atuação intensa e brilhante no país junto ao Brizola, na luta pelas cooperativas de trigo, na reforma agrária), mas para as famílias. Poucas famílias acompanharam o exílio como foi o nosso caso, que fomos para lá já em agosto de 1964 e ficamos o tempo todo junto ao meu pai. O exilado acha que o exílio durará pouco, mas nunca é isso que acontece. Vive com as malas prontas e de olho no que acontece no seu país de origem, pensando na volta. É, ainda, uma situação mais difícil que a do imigrante, que, de alguma forma, está lá por escolha (mesmo que impelido à imigração por questões econômicas) e que também sonha com o retorno. O exílio deixa marcas, mostra como o “enraizamento” é frágil. Tem coisas boas, como o des-centramento, a possibilidade de estranhar, de ver com olhos de estrangeiro não apenas a realidade do país que o acolheu, mas também a do seu país de origem. Sempre vejo o Brasil com um certo espanto, até hoje, há coisas que para mim são incompreensíveis, que tento entender. Isso é algo que, por um lado é ruim, pois impede estarmos “totalmente em casa”, e por outro é bom, pois nos permite ver coisas que outros não enxergam. Para o meu trabalho como pesquisadora, isso é algo bom, me permite me distanciar do meu objeto.

Sul21 – O que a fez entrar para o movimento de resistência no Uruguai? Quantos anos você tinha?
F.S. – Foi exatamente a vontade de integração, de parar de pensar na volta, no retorno, deixando assim a condição de exilada, de estrangeira. Tinha 17 anos quando comecei a militar no movimento estudantil.

Sul21 – Quando você caiu, foi presa, em abril de 1972, pertencia ao Movimento de Libertação Nacional, os Tupamaros. O que a levou a militar nesse e não em outro grupo?
F.S. – O movimento Tupamaro era peculiar, não era um partido, era um movimento bastante heterogêneo e aberto. Isso me agradou e me agrada, uma certa liberdade. Teve um papel importante quando da fundação da Frente Ampla (que atualmente está há duas gestões na presidência do país), suspendeu suas atividades armadas e iniciou o movimento legal, o movimento 26 de Março. Era um grupamento com características próprias, com um pensamento próprio.

Flávia Schilling - Quyerida Liberdade“Estou convencida de que a família não é uma carga. Pelo menos quando é família e não um monte de pessoas que vivem juntas por rotina ou compromisso, sem que exista nada que as una. (Não deixa de ser uma ironia minha apologia da família quando se supõe que pertenço a um movimento destinado a destroçar a mesma…).” (carta de 1º/3/75, em Querida Liberdade)

Sul21 – Você foi atingida por um tiro no pescoço, mas não perdeu a consciência. O que pensou naquele momento? Sentiu medo? Raiva? Desesperança?
F.S. – Achei que morreria e, logo após, achei que não morreria, que sobreviveria. Fiquei calma. O medo não apareceu, era uma grande calma. O medo foi anterior ao tiro, quando, ao ver que era um único homem que nos prendia, pensei em correr e escapar.

Sul21 – A recuperação do ferimento foi difícil, você enfraqueceu, mas – pelas suas cartas – parece que não perdeu o bom humor. Como conseguiu isso?
F.S. – Havia que passar força para a família, que já estava vivendo uma situação de grande angústia. O bom humor era fundamental, não apenas para mim, mas para minha família. As cartas tentam esconder a angústia, a dor, o medo. Pensava principalmente em não aumentar a dor da família.

Sul21 – Como foi a sua convivência com as companheiras e os militares na prisão em Punta Rieles e nos quartéis pelos quais passou?
F.S. – Tivemos uma convivência ótima que até hoje permanece na forma de amizades duradouras e profundas. Não foi uma experiência de todas (as presas), tive sorte de estar com companheiras fantásticas, tivemos uma relação de apoio mútuo, de amparo e respeito o tempo todo. Óbvio que a relação com os militares foi absolutamente diferenciada, havia alguns horríveis, não havia nenhuma interlocução, e havia outros que eram mais abertos e queriam conversar para entender o que estava acontecendo no país. Foi muito diferenciado, assim como foram diferenciados os regimes pelos quais passamos durante os anos de prisão.

Sul21 – É possível falar um pouco mais sobre essas diferenças e suas consequências na prisão, nas formas de tratamento aos presos?
F.S. – A prisão nunca é uma prisão, são várias prisões dependendo do momento histórico, principalmente quando se trata de uma prisão que durou 13 anos. Para uma prisão política foi muito longa e houve períodos piores de repressão e outros de menos repressão.

“Acho que uma boa experiência que demonstra que difícil e que possível é conviver bem, é o que nós vivemos aqui dentro. Temos apenas uma opção: aguentar ou aguentar. Não há possibilidade de pedir divórcio nem de ir embora batendo a porta, pois geralmente as portas estão fechadas com cadeado.” (carta de 7/1/76, em Querida Liberdade)

"Todos aprendemos que não há limites para a estupidez humana, isso balança a confiança que se pode ter na natureza humana" | Foto: iea.usp.br
“Todos aprendemos que não há limites para a estupidez humana, isso balança a confiança que se pode ter na natureza humana” | Foto: iea.usp.br

Sul21 – Você consegue falar sobre as torturas que sofreu? O que passou na mão dos torturadores?
F.S. – Tudo depende do que você entende por tortura. Falo pouco, creio que todos aprendemos que não há limites para a estupidez humana, isso balança a confiança que se pode ter na natureza humana.

Sul21 – É possível avaliar o que traz mais consequências para o preso, se a pressão psicológica ou a violência física?
F.S. – Não, seria absolutamente equivocado fazer essa comparação, todas as formas são terríveis e devem ser combatidas.

Sul 21 – Qual foi sua relação com os torturadores? Você chegou a sofrer da Síndrome de Estocolmo?
F.S. – Não tive nenhuma, nem Síndrome de Estocolmo.

Sul 21 – Qual o seu sentimento ao reencontrar o militar que a feriu? Voltou a vê-lo depois de libertada? O que lhe diria hoje?
F.S. – Nunca o vi depois de libertada e sim durante a prisão. Creio que ele percorreu um caminho que não o levou a se orgulhar do que fez, o que foi muito reparador para mim. Para ele, o tiro não era motivo de orgulho e chegou a cogitar abandonar o exército.

“Aqui, cada oficial se especializa num preso, em procurar seu ponto fraco. Isso é mútuo: o preso também procura o ponto débil do seu torturador, e em poucas horas se cria uma relação de dependência entre um e outro. O preso fica angustiado e inseguro quando muda de torturador. Cria-se uma relação de simpatia, no sentido grego da palavra (viram que culta?), de sentir junto, de sofrer um com o outro. No meu caso isso aconteceu; e de uma maneira muito mais clara com o que me deu o balaço. Por parte dele, uma necessidade imperiosa de me contar o que havia sentido, o que havia pensado, que reação teve. E saber como havia ficado eu, também o que havia sentido, por que havia atirado a bolsa na sua cara.” (carta de quarta, 11 de julho de 73, em Querida Liberdade)

Sul21 – Quais as sequelas que ficaram da tortura? Você ainda enfrenta alguma?
F.S. – Em princípio não, além das cicatrizes do tiro. Mas há algumas companheiras estudando nossa condição de saúde e há uma maior fragilidade devido, talvez, às situações vividas.

Sul21 – Qual o sentimento que nunca perdeu na prisão, apesar da tortura?
F.S. – Sabíamos que sairíamos de lá e precisávamos estar o mais inteiras possível.

Sul21 – Em algum momento você se acovardou?
F.S. – Houve momentos de desespero e dor, especialmente quando descobri que tinha mioma no útero, o que poderia dificultar minha possibilidade de ser mãe.

Flavia, entre Flávio Tavares e Flávio Koutzii, ao serem homenageados pela Assembleia Legislativa | Foto: Marcos Eifler / Assembleia Legislativa
Flavia, entre Flávio Tavares e Flávio Koutzii, ao serem homenageados pela Assembleia Legislativa | Foto: Marcos Eifler / Assembleia Legislativa

Sul21– Como você se lembra da prisão? Com raiva? Ódio? Dor?

F.S. – Com espanto, até hoje me pergunto como fizemos para aguentar.

Sul21 – Obteve resposta a esta pergunta? Ou pelo menos um indício do que pode tê-las feito sobreviver a tudo que passaram?
F.S. – Escrevi minha dissertação de mestrado sobre a resistência na prisão política. Foi uma forma fantástica de elaborar as vivências e encontrar algumas pistas para a sobrevivência. O apoio mútuo, o estudo, a manutenção das expressões da vida, a arte, a escrita, todas foram formas de resistência.

Sul21 – Em suas cartas, algumas vezes, você em fala em Deus, revelando ter fé, e o seu livro Querida Liberdade é dedicado a Dom Paulo Evaristo Arns. Qual a relação da Igreja Católica com os movimentos de resistência no Cone Sul?
F.S. – Não me lembro de falar de Deus, não tenho nenhuma religião. Conheci a experiência de resistência da Igreja através do meu pai, que publicou um livro sobre D. Hélder Câmara (Editora Diálogo) e depois, quando cheguei ao Brasil, conheci um clube de mães e vi o trabalho das pastorais.

Sul21 – Seus sentimentos cristãos permitiram que você perdoasse os companheiros que fraquejaram sob tortura?
F.S. – Não são sentimentos cristãos, são apenas humanos, por ter consciência de que ninguém pode saber como se comportaria em uma situação limite.

Sul21 – E quanto aos torturadores? Há perdão para eles?
F.S. – Creio mais na reparação e, principalmente, na garantia da não repetição.

“De alguma maneira existe, no Brasil, a construção do esquecimento, típica do trabalho com a memória aqui. (…) Por isso, não falo de ‘falta de memória’, não uso esse termo, porque na verdade a questão que identificamos e que nos desafia é a da construção do esquecimento existente no Brasil. Essa construção do esquecimento é sistemática, é uma característica muito importante neste país.” (Memória da Resistência ou a Resistência como Construção da Memória, publicado no volume 3 da coleção A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, editado pela Assembleia Legislativa do RS)

Sul21 – Como você ficou sabendo da campanha dos brasileiros pela sua anistia? Teve esperanças de um final feliz? Ou teve dúvidas? A anistia como está posta no Brasil, propõe o esquecimento?
F.S. – Fiquei sabendo em alguma visita, recebi também a visita do cônsul do Brasil no Uruguai, tive esperanças, claro. A anistia como está no Brasil não necessariamente propõe o esquecimento, há muitos trabalhos excelentes sobre história e memória.

Sul21 – Pode citar algum?
F.S. – Carla Rodeghero e a equipe de História da UFRGS, por exemplo, estão fazendo um excelente trabalho. Posso, também, citar Susel Oliveira da Rosa com seu livro Mulheres, Ditadura e Memória. O trabalho do Instituto Vladimir Herzog também é de grande importância.

Sul21 – É possível esquecer o que se passou sob os regimes autoritários? Há uma forma de conciliação? Há o exemplo da proposta de Mandela na África do Sul.
F.S. – Não é possível, mas é possível aprender com os vários países que passaram pelas comissões de verdade, perdão e reconciliação. Um dos casos mais estudados é justamente o da África do Sul, há materiais muito bem elaborados sobre o que lá se passou. A possibilidade de conciliação ou de perdão ocorreu após o relato da verdade dos acontecimentos.

Sul21 – Como foi a sua readaptação à liberdade? Qual o maior problema que enfrentou ao sair da prisão?
F.S. – A dificuldade em retomar a vida em todos os seus detalhes e significados. Foi algo bastante solitário, mesmo tendo um grupo de brasileiros que nos apoiou, houve um grande trabalho de reconstrução e busca de um caminho que não se fixasse no passado, que permitisse um presente e um futuro, novos projetos e sonhos.

“O movimento pelas ‘Diretas Já’, para mim, é um marco. Pela primeira vez vejo aqui a dimensão do país, sua força e me encanto. Logo após, fico perplexa com a outra grande manifestação, a do choro, da orfandade: a morte de Tancredo Neves. Que país é este? É o que me pergunto até hoje.” ( Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP)

Sul21 – Sua identificação com o Uruguai continua? Você, de alguma forma, mantém relações políticas, milita pelas causas do povo uruguaio?
F.S.- Não políticas e sim afetivas, estou em contato constante com amigas/os de lá.

Sul21 – Você faz parte da memória do Uruguai e do Brasil. Você diria que as memórias desses dois países já foram armadas?
F.S. – Com certeza, inclusive no Uruguai há um lindo e consistente trabalho com a memória.

“Quando se pensa em memória, não se deve esquecer que ela é um fragmento, é individual e só pode se compor no coletivo. Igualmente não se pode perder a noção desta característica: a memória é uma arma.” (Memória da Resistência ou a Resistência como Construção da Memória, publicado no volume 3 da coleção A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, editado pela Assembleia Legislativa do RS)

Sul21 – Você ainda faz autocrítica? Ou isso ficou no passado?
F.S. – O tempo todo nos revemos e vemos o que fazemos, refletimos, claro, as ações. O termo autocrítica ficou muito ligado a práticas bastante sectárias ou partidárias.

Sul21– Ao olhar para trás, você tem algum arrependimento? Acha que errou em algo?
F.S.- Não, não tenho.

Sul21 – O que ficou da luta das mulheres que resistiram às ditaduras para a juventude de hoje?
F.S. – Cada época tem suas lutas e suas formas de luta. Fomos precursoras, em muitos aspectos, de um feminismo igualitarista bem interessante e conseguimos ocupar lugares nesta sociedade de luta, pelos direitos humanos.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora