Educação
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9 de fevereiro de 2022
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17:03

Número de crianças não alfabetizadas cresce 66,3% na pandemia, aponta ONG

Por
Fernanda Nascimento
fn.imprensa@gmail.com
Foto: Alex Rocha/PMPA
Foto: Alex Rocha/PMPA

Os impactos da pandemia de covid-19 na educação começaram a ser mensurados, com efeitos significativos sobre a alfabetização de crianças. Entre 2019 e 2021, o número de crianças entre 6 e 7 anos de idade que não sabem ler e escrever cresceu 66,3%. O percentual subiu 25,1% para 40,8% de não-alfabetizados em dois anos. Os dados foram divulgados pela Organização Não Governamental (ONG) Todos Pela Educação, a partir de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A dificuldade na alfabetização foi sentida pelas crianças e observada pelos responsáveis. Com a interrupção das atividades em março de 2020, a retomada gradual em formato no mesmo ano e o retorno às aulas presenciais ao longo de 2021, os processos de aprendizado foram interrompidos ou alterados.

A barista Priscila de Castro Alves é uma das mães que vive a dificuldade de alfabetização da filha, Isabella, de 7 anos. Em 2021, a criança frequentou o primeiro ano do ensino fundamental, inicialmente de maneira remota e, nas últimas semanas, presencialmente. Estudante da rede municipal de Canoas, ela ainda não conseguiu se alfabetizar. “Ela não lê e não escreve. Ela copia. Se escrever o nome dela, ela copia. Sabe algumas letras e só. Eu sei que ela tá bem atrasada”, lamenta Priscila.

A auxiliar administrativa Mel de Moura Davi também vê as dificuldades no aprendizado do filho, Antonio. No início da pandemia, em 2020, ele tinha seis anos e ingressou no primeiro ano da rede pública de Porto Alegre. “E só agora, com oito anos, é que ele está conseguindo ler algumas coisas, mas ainda com muita dificuldade de compreender. Eu digo que ele ainda está no processo”. Para escrever “tem ainda mais dificuldade e troca bastante as letras”, relata. Em julho de 2021, Davi foi matriculado em escola particular, mas ele segue com dificuldade no aprendizado.

A professora Vanessa Mendes, docente da rede municipal de ensino de Porto Alegre, lecionou para alunos do segundo ano do ensino fundamental durante toda a pandemia. E enumera uma série de dificuldades vividas por docentes e familiares durante os períodos de restrição de circulação e no retorno das aulas. De acordo com Vanessa, a falta de orientação sobre o método de ensino atrasou o desenvolvimento das atividades. “Ficamos meses sem orientação sobre qual currículo deveria ser priorizado, sobre a melhor forma de contatar os alunos. Depois, tivemos uma plataforma que não era acessível nem para professores, que não tinham computador, e nem para estudantes, que não tinham celular ou internet”, relata.

Na pesquisa divulgada pela ONG Todos pela Educação as desigualdades raciais e de classe no processo de educação também estão explicitadas e acentuadas. Os percentuais de crianças pretas e pardas que não sabiam ler e escrever chegaram a 47,4% e 44,5% em 2021, sendo que, em 2019, eram de 28,8% e 28,2%, respectivamente. Entre as crianças brancas, o percentual passou de 20,3% para 35,1% no mesmo período. Entre as crianças mais pobres, o percentual foi ampliado de 33,6% para 51,0%, entre 2019 e 2021. Por outro lado, dentre as mais ricas, o impacto foi menor, saindo de 11,4% para 16,6%.

“As pessoas perderam emprego, elas venderam celulares para comprar comida, não iriam usar para acompanhar as aulas. As famílias estavam vivendo questões delicadas, de perdas financeiras, de perdas por motivo de saúde, e certamente a alfabetização não era a prioridade para a maioria delas”, avalia a professora Vanessa.

Carisa Porto Piton dos Santos, mãe de João Davi, de seis anos, é uma das mães que percebeu as mudanças no aprendizado do filho. No início da pandemia, João Davi tinha quatro anos e frequentava o ensino infantil. Ele já estava iniciando o processo de alfabetização, com reconhecimento das letras e escrita do próprio nome. Com a pandemia, praticamente interrompeu o processo. “Hoje, percebo que até para escrever o nome, ele pede que a gente escreva primeiro”, relata Carisa.

Com outra filha de quatro anos, Carisa deixou o emprego durante a pandemia e passou a cuidar das crianças. O acompanhamento de João Davi às aulas remotas foi difícil, com dificuldade de concentração nas tarefas. Neste mês, João Davi ingressa no primeiro ano e Carisa tem receio que ele tenha dificuldade para acompanhar o ensino. “Eu fico preocupada em como vai ser esse primeiro ano. Ele está entrando sem ler e escrever, ele sabe contar, sabe falar as letras, mas a minha opção foi não forçar”.

O caso de Davi é semelhante ao de outras crianças acompanhadas nas turmas de Vanessa e colegas. A professora explica que além de terem o processo de aprendizado interrompido, muitas crianças acabam “perdendo habilidades que já tinham desenvolvido”.

E se mais de 40% das crianças não sabem ler e escrever com 6 e 7 anos, o processo de aprendizado daqueles que conseguiram se alfabetizar também não foi simples. Andreia Sousa de Moraes, técnica em enfermagem, trabalhou na linha de frente do atendimento ao coronavírus enquanto auxiliava o filho Davi Luis na escola. Este ano, Davi ingressa na segunda série e sua alfabetização foi realizada durante a pandemia.

Estudante de uma escola pública de Porto Alegre, Davi contou com a ajuda dos pais e do irmão para aprender a ler e escrever. “No primeiro ano, a escola mandava todo o material pela internet e a gente tinha condições de imprimir. Eu sei que muitas mães não tiveram as condições que a gente teve de fazer isso. Mesmo assim, foi um período muito difícil, porque o Davi apresentou ansiedade, tinha problemas para dormir”. O retorno às aulas também envolveu um processo de adaptação. “Quando as aulas retornaram, essa questão da convivência, de ver os colegas uma semana e depois não ver alguns dias, de brincar com restrição, teve essa parte psicológica bem difícil, que também tem relação com o ensino”, comenta Andreia.

“Muitas coisas se aprende no grupo. Os alunos aprendem com os pares. Eles aprendem uns com os outros. A falta de contato com outras crianças é uma das coisas que mais impossibilita a alfabetização”, avalia Vanessa. A professora conta que os alunos que retornaram ao ensino presencial “não sabiam nem como se organizar na escola, não tinham conhecimento de grupo, era como se fossem crianças que nunca tivessem ido para a escola. E mesmo aqueles que fizeram as atividades em casa, a gente não viu tanto aprendizado neles como já deveriam ter”.

Na casa de Sara Medeiros*, a principal dificuldade foi ensinar sem a prática pedagógica que os profissionais de educação possuem. A filha da vendedora, Maria*, de sete anos, é estudante de uma escola particular da região metropolitana de Porto Alegre. “Não foi fácil, apesar de ter suporte da escola, de ter envio de vídeos, de materiais, de fazerem as crianças lerem nas aulas online, elas precisavam de um suporte. E a gente não tem experiência em ensinar”, conta.

Experiência semelhante foi vivida por Camila Caron, analista de logística. Com duas filhas, com nove e seis anos, ela relata que as crianças tiveram dificuldade de acompanhar as aulas online da escola particular em que estudam e, no retorno ao ensino presencial, de se adaptar a um modelo de ensino com restrições. “É difícil manter a concentração em frente ao computador e depois retornar e precisar ficar de máscara, brincar com restrições, isso tudo atrapalhou a maneira como elas aprenderam”, pondera.

Para a professora Vanessa, o desafio dos próximos anos será grande. Mesmo com o retorno das aulas presenciais, em 2021, muitos alunos não compareceram às aulas por medo da contaminação e ela sequer conhece parte deles – que não realizou as atividades à distância e tampouco compareceu nas aulas presenciais. “Tem coisas que há uma idade certa para aprender, mas vamos ter que fazer um esforço de ter um currículo emergencial que dê conta de recuperar o que é mais importante, entendendo que não é somente português e matemática, mas que a formação é bem mais complexa”.

*Nomes alterados a partir de pedido da entrevistada.


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