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5 de janeiro de 2011
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08:00

2666, de Roberto Bolaño, um romance que se passa no inferno

Por
Sul 21
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2666, de Roberto Bolaño, um romance que se passa no inferno
2666, de Roberto Bolaño, um romance que se passa no inferno

Por Charlles Campos

Considerando que o romance 2666 tenha essa grandeza representativa que alguns livros possuem para estabeler um painel psicológico da época e da geografia a que pertencem, essa caudalosa e sombria ficção produzida por Roberto Bolaño no fim de sua vida pode figurar como o enfeixe a três outros romances também não tão felizes sobre nossa realidade latinoamericana. Apesar dos tantos equívocos que estão sendo ditos sobre 2666 — sobre o que tornou-se uma convenção dos que não o leram, dizer que padece de ilegibilidade, ou, curiosamente, o extremo oposto de compará-lo à literatura de Dan Brown — , a visão mais clara é que ele é um prosseguimento da narrativa da derrocada espiritual da América Latina numa espécie de modernidade imposta sobre ela de cima para baixo, fato antecipado pelos romances “O Senhor Presidente”, de Miguel Angel Asturias, “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez, e “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar. Nesse sentido, apesar de uma das facetas de autopromoção de Bolaño ter sido a de diminuir a importância dos escritores do boom, ele não faz outra coisa que dar sua substancial contribuição a esses predecessores, desencavando essa porção de terra da inércia da dominação e trazendo-a à luz de uma revelação sem eufemismos. No romance de Miguel Asturias vemos a ditadura patriarcalista em toda sua nudez ostensiva, os assassinatos promulgados em seu nome, o silêncio rigorosamente imposto sobre a população subjugada, a opressão crua contra a qual não havia ainda um nivel possivel de reação por parte dos não conformados. Já em “Cem Anos de Solidão”, Garcia Márquez, apreendendo a primeira lição lançada pelo guatemalteco, vai além, criando uma mítica para que o latinoamericano possa reconhecer-se nela como um povo, com todas as suas idiossicrasias heróicas, os seus orgulhos, paixões e derrotas — ainda mantendo o travo principal da dominação que o norte-americano ou o europeu impunha sobre nós, mas alargando o direito de fazermos dos atributos da discriminação as características de uma personalidade étnica própria. É em García Márquez que encontramos o elemento dissidente, não pela primeira vez, mas com a coragem de alçar-se à legitimidade literária de um Dom Quixote, sem culpa e sem a necessidade de rebaixar-se ao caricaturesco. Uma outra visão errada sobre 2666 é a de que ele rompe com o dogma regionalista dos escritores do boom, levando a narrativa para cenários urbanos estrangeiros e utilizando técnicas de escrita cinematográficas da moda, do noir americano ao relato da segunda guerra, o que me faz pensar que diabos de infelizes são esses teóricos literários por não poderem abdicar de uma profissão martirizante da qual não tem o mínimo talento, e passarem para ocupações mais condizentes de mecânica de automóveis ou ascensoristas de motel. Na literatura sofisticada dos representantes do boom, o possível regionalismo se encaixa com mérito ao universal tolstoiano, e Bolaño seria um desequilibrado se tentasse escapulir do fantasma da influência por essa brecha.

É outro mérito de Bolaño não parecer-se com nenhum desses escritores, ter uma musicalidade, um enfoque e uma subjetividade que não remetem à identificação com essas fontes diretas. O terceiro romance citado acima, “O Jogo da Amarelinha”,  consolida essa distância. Cortázar, que poderia ser apontado — inclusive por mim — como um escritor de recursos muito superiores aos de Bolaño, sob a ótica de que seu papel de trabalhador contínuo de fazer o ultra-som da América Latina antecipa o prosseguimento lógico da obra do chileno, os tornam com a mesma equivalência canônica, o mesmo valor de criadores genuínos. No romance de Cortázar, “O Jogo da Amarelinha”, um passo a mais é dado além do limite traçado por García Márquez. Cortázar nos dá o direito de sermos intelectuais, seleciona uma série de personagens deportados para encarnar a nossa progenitura do Pensamento, nos eleva à condição de homo pensandis. Podemos aceitar sem vergonha que nossos diálogos foram promovidos ao nível do debate político e da busca filosófica, sem termos o peso de consciência de que devemos desculpas por essa ousadia de índios que esquecem que seu destino social é apenas a buginganga e tudo relacionado a ela. E Cortázar, na suprema cara-de-pau de mostrar que não estava para brincadeira, corajosamente acrescenta um adendo ousado à nossa fórmula do pensar: o humor anárquico. Como se não bastasse o esnobismo de subdesenvolvidos com volumes de Adorno debaixo dos braços, esses índios pós-colombianos com os pés atolados no chorume da banana querem ser engraçados, não os piadistas que têem em Groucho Marx ou nos três patetas a memória do riso, mas querem ser engraçados de uma maneira excêntrica, imaginando como seria se Kant saltasse por sobre a mesa e dançasse um fandango, ou se Plank se lançasse a um longo desafio de trocas de achacalhamento com Cyrano de Bergerac. Por isso, na lucidez de ser um instrumento de continuação da confecção do grande mural da verdade latino-americana, Bolaño sabia que não poderia ser engraçado. Cortázar já havia esgotado essa opção.

2666 é o prosseguimento desses três grandes retratos cronológicos da América Latina, mantendo-se original e independente, e, ao mesmo tempo, coerente com o andamento do passado. Não é um romance policial, apesar da maior seção de suas cinco partes ser uma coletânea em ritmo jornalístico dos quase infinitos assassinatos de mulheres na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Não é um romance sobre estrangeiros que, em maior ou menor grau, se relacionam com a América espanhola, mesmo a maioria quase absoluta de personagens sendo de americanos e europeus. O enigma a que o romance se propõe a ser está mais embaixo. Não é um romance sobre loucura, como dá a acreditar a já antológica cena da segunda parte, do livro de matemática pendurado de páginas viradas para baixo no varal, soprado pela beleza aleatória do vento, obra emulada pelo professor Amalfitano de um dos rascunhos de DuChamp. Ou, que seja, simula ser cada uma dessas coisas apenas pelo artifício obrigatório de prender o leitor ao sabor de seus interesses mundanos, mas, nas camadas mais profundas, faz seu serviço de encher de luz o panorama atual da América Latina de García Márquez, Astúrias e Cortázar, para mostrar ao leitor a derrocada de volta a uma estaca zero.

2666 é uma súmula nada elogiosa sobre o horror da América Latina. Levei muito tempo para descobrir isso: precisamente a leitura de todos os outros romances de Bolaño antes de chegar a esse. Em uma resenha que escrevi sobre “Estrela Distante”, para o blog do Milton Ribeiro, meu mote principal foi condenar a total falta de fé de Bolaño, sua “rendição”, sua secura, sua abstinência voluntária a todas as nuances da escrita. Abria mão da filosofia, da poética, do humor. Era ostensivamente vazio e objetivo, como as fotos de um tratado sobre sarcomas. Com 2666 eu compreendi que ele não poderia ser de outra maneira. Que talvez essa imposição a qual se submetera em nome da fidelidade à sua missão de dar sequência a um espólio, o tenha feito sofrer sob o peso da disciplina. Sua razão artística e sua legitimidade, o que o tornava justificável como escritor, era essa frieza. Como todo prosseguidor que tem algo de valor a dizer, assumia sua condição de antípoda em relação a seus antecessores. Tinha de destruir toda a mítologia de García Márquez, a poética joyceana de Astúrias, a inteligência, a cultura e o humor de Cortázar, para, em contrapartida, reafirmar todas essas características, asseverando que a América Latina de hoje não comporta mais tais molduras. A América Latina de Bolaño é uma espécie de Macong conradiano, uma terra sem lei, de extrema violência, uma terra que, no dizer de “Estrela Distante”, nunca estaria pronta para a poesia. Daí o tema recorrente nos seus romances da procura por uma poeta ou por um escritor desaparecido, ou as figuras distorcidas nas quais se juntam como numa caricatura grotesca o paradoxo da escrita e do assassinato, do esclarecimento e do irracional: a busca por uma utopia romântica para a qual o desespero da não aceitação leva seus detetives selvagens para onde as miragens do sonho desaparecem sem vestígios, no deserto, ou contra os sólidos muros da cidade.

Borges, num de seus memoráveis prefácios, lembra o que disse um crítico sobre o romance “O Morro dos Ventos Uivantes”: não se engane achando que o cenário do romance é a Inglaterra vitoriana; ele na verdade se passa no inferno. O mesmo se pode dizer de 2666. Todo ele se passa no inferno, mas no esteriótipo de um inferno onde as semelhanças com a América Latina são mais que coincidentes. Só um latinoamericano pode perceber plenamente isso. Por isso, 2666 é a grande denúncia sobre a prostação espiritual dessas américas. A denúncia do quanto o coronel Buendía, o Cara de Anjo, e os exilados mannianos superinteligentes de Cortázar fracassaram diante a bestialização do cotidiano político de uma região que nunca teve mais que simulações mal arranjadas de redenção. Nesse romance inacabado no qual Bolaño conseguiu dizer tudo que queria, o chileno se aproxima de outro importante escritor caribenho, o índo-britânico V. S. Naipaul, para quem a América Latina ainda está distante de se livrar de sua sina de colônia atrasada, vítima do embasbacamento conivente com as mesmas formas de poder que apenas troca de roupagem para falsear uma mudança, sofrendo sob a violência e o assassinato. Uma América para a qual não só a poesia é inacessível, mas qualquer forma de esclarecimento iluminista.


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