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4 de dezembro de 2010
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08:00

Outras Cores, de Orhan Pamuk

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por Charlles Campos

É natural na cronologia da literatura que, entremeado ao surgimento dos grandes autores, apareçam aqueles que não são nem grandes nem medianos, que não estão destinados a escrever obras revolucionárias nem a livros totalmente irrelevantes, e cuja perenidade nas letras está ditada não por sua propensão criadora à imortalidade, mas a seu esforço disciplinado e devotado para a preservação da importância da palavra: algo como fazem os investidores financeiros que se esmeram em manter os índices econômicos em equilíbrio até que apareça o gênio que abra as comportas dos megainvestimentos. Orhan Pamuk é uma dessas peças chave que a literatura necessita que, não sendo um grande escritor, seus livros, contudo, estão longe de poderem ser desprezados; que, não sendo o portador da sentença bombástica, o que escreve e fala está, no mais condizível grau de importância, sempre em relevância. E nenhum volume de sua autoria — além do realmente bom Istambul — oferece suas melhores qualidades como narrador, ensaísta, observador da vida prosaica e moderado opositor das forças constituídas da sua Turquia, quanto a recém lançada miscelânea de textos esparsos Outras Cores, Ensaios e Um Conto, pela Companhia das Letras.

Há uma categoria de leitores, entre os quais me incluo, para a qual Outras Cores é destinado. Os leitores que gostam de ler sobre o escritório do autor, os aspectos de sua intimidade, a escrita por detrás da escrita, as besteirinhas poéticas rascunhadas num guardanapo ajuntadas na papelada que vai dar escopo ao volume, e que no final se revelam tão mais substancias quanto a sua produção principal. Esse livro é para aqueles leitores que se regalam com os extras de um DVD, o making of, as cenas excluídas e tais. À diferença de outro livro sobre as atividades e circunstâncias documentais que cerceiam a obra do autor, o O Carvalho e o Bezerro, obra muito popular de Soljenitsin lançada após sua premiação do Nobel, Outras Cores não paira muito sobre as polêmicas políticas suscitadas pelas palavras de Pamuk. Aliás, como passou a ser moda na colisão entre escritore s e autoridades políticas e religiosas de seus Estados da década de 1990 para cá, o que gerou tal polêmica não foi mais que algumas frases proferidas por Pamuk numa entrevista dada à Paris Review (incluída no livro), em que ele denuncia o genocídio armênio perpetrado pelo governo turco, de 1915 a 1917. Afora essa entrevista, há alguns outros pequenos ensaios (a maioria dos textos são muito curtos) em que Pamuk apenas toca no assunto, o que a eficácia da obra de ser um misto de papéis pessoais que não deveriam ser revelados a público acaba por transparecer um autor que está inseguro quanto a se valeu a pena ter se submetido ao inconveniente de responder a um processo por quebra de decência patriótica, apenas por algumas palavras mal pensadas.

Outra confissão, dita como uma espécie de deslize não editado, que a espontaneidade da obra oferece, é a que dá maior intuição da verdadeira tendência de Pamuk a não se meter em temas espinhentos: a de que não se importava por assuntos que não fosse “escrever belos livros”, de que era um perfeito rascunhador a-político, e que só teve uma pré-visão da situação interna da Turquia, quando foi escalado a receber Arthur Miller e Harold Pinter numa visita desses autores a seu país. Foi só desde então que Pamuk desenvolveu “uma persona política muito mais vigorosa do que desejava”. Nesse molde de adepto a uma revelação que Pamuk escreve alguns ensaios não de todo desinteressantes sobre o papel da literatura dos países subdesenvolvidos, condenando (já tardiamente, pois se trata de conversa requentada) a posição de Sartre em dizer que países do terceiro mundo não poderiam perde r tempo com a literatura, devendo-se se preocuparem diuturnamente com a revolução social e política.

Tirando as confissões miúdas de sua vida cotidiana e algumas composições preguiçosas que dão uma sabor de diário em alto estilo (reafirmo: prosaicamente saborosos), as partes mais densas desse livro são os três ensaios vigorosos sobre Dostoiévski, uma resenha identificadora sobre Mario Vargas Llosa, e uma reafirmação de amor por Thomas Bernhard que deixa-nos comovidos todos os outros admiradores desse austríaco.

Tudo revela a organização e disciplina de Pamuk, sua catalogação das próprias palavras com um amor próprio não ofensivo e sem esnobismo (apenas com a real seriedade que um escritor convicto tem de ter). Um escritor de família rica que, seguindo uma tradição dissidente dos filhos que se negam a seguir o caminho do direito internacional e do comércio hereditário, optam por um monastério estético e moral firmemente movido por sua inabalável vontade própria. No caso de Pamuk, a literatura.


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