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18 de janeiro de 2018
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10:38

‘Para onde vamos?’: após remoções no Parque Harmonia, população de rua teme destino incerto

Por
Sul 21
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Restos de pertences de moradores de rua na Parque Harmonia, onde pessoas foram removidas no último sábado (13). Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

Guilherme Ribeiro foi avisado no final da tarde de sábado (13) que seus pertences haviam virado lixo e já não tinham onde morar. Ele havia passado o dia ao lado da companheira, Jovana, que estava preste a dar à luz. O enxoval do bebê foi levado, assim como roupas, mantimentos e outros pertences de 14 pessoas em situação de rua que estavam instaladas no Parque da Harmonia (Parque Maurício Sirotski Sobrinho). A única coisa que sobrou intacta foi um coração de argila esculpido por Guilherme nas oficinas da Escola de Porto Alegre (EPA). Ele não teve permissão para pegar nada. Dois dias depois do episódio, na segunda-feira (15), estava com as mesmas roupas, aguardando a alta hospitalar da filha e da companheira.

Segundo nota da Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento (SMAM), a remoção de pessoas em situação de rua do Parque Harmonia ocorreu após decisão da Justiça Federal. Em 2016, a Secretaria teria notificado os moradores do Parque para que deixassem a área. No entanto, membros do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), juntamente com a Defensoria Pública, ingressaram com uma ação civil para conseguir, por intermédio da União, moradia para os notificados. Segundo o defensor público federal Geórgio Endrigo da Rosa, responsável pelo caso, impasses judiciais levaram a ação para tribunais superiores. Assim, uma tutela cautelar e uma tutela antecipada foram emitidas para assegurar que os moradores não fossem retirados do local. A última tutela, no entanto, foi revogada na sexta-feira (12).

Um dos barracões abandonados no sábado (13). Foto: Joana Berwanger/Sul21

Segundo a nota da SMAM, “devido à excepcionalidade do julgamento do ex-presidente Lula, que ocorrerá nas imediações do parque, no próximo dia 24, a Brigada Militar solicitou, por motivos de segurança, o isolamento da área do Harmonia”. Logo, em ação que mobilizou o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), a própria SMAM, cerca de dez veículos da Guarda Municipal e a Procuradoria Geral do Município (PGM), os moradores foram removidos. Em vídeo, uma escavadeira é utilizada para destruir uma das barracas de lona. De acordo com a Secretaria, dos 14 moradores que se encontravam estabelecidos no local, nove receberam a proposta de encaminhamento para abrigos e albergues municipais.

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A maioria são catadores, cuidadores de carros; têm cachorros. Eles não são o perfil que é acolhido por abrigos”, afirma a educadora social do MNPR Veridiana Farias Machado. Segundo ela, ir para um albergue significa que teriam que perder sua autonomia e seus companheiros. Veridiana questiona o que motivou a ação violenta da Prefeitura, que há anos tem sido questionada sobre suas políticas de habitação. “Há dois anos ocupamos o Departamento de Habitação do Município de Porto Alegre (Demhab) e comprovamos a inexistência de um plano de habitação adequado na cidade. Desde lá, a Defensoria Pública vem acompanhando os casos e fazendo ações individuais para conseguir casas para essas pessoas”, afirma Veridiana. “Não é só chegar tirando, são pessoas e precisam ter para onde ir. Não adianta só repressão, tem que ter serviço”, completa.

Após as remoções, Georgio Endrigo, por meio da PGM, iniciou requerimento para garantir, pelo menos, um aluguel social para os outros cinco moradores que tiveram suas barracas destruídas e também estavam vinculados aos processos que vinham ocorrendo desde 2016. “Falta, apenas, a confirmação do Demhab”, explica o procurador que acredita que, até o final da semana, os moradores conseguirão o benefício que varia entre R$ 300 e R$ 500. “Outra questão é o pagamento em dia pela Prefeitura”, adverte, no entanto, Veridiana. Guilherme e sua companheira, por exemplo, conseguiram o benefício por três meses – por meio da Fundação de Assistência Social (Fasc) – para ficarem em uma hospedaria durante o final da gestação. Após isso, eles deveriam receber uma vaga em um abrigo de família do município. “Quando a gente soube, saímos pra comemorar”, conta Guilherme. Eles ficaram um mês na pousada. Logo depois, a Prefeitura parou de pagar. “A gente encaminhou os papéis. A gente entregou tudo. Eles só não liberaram”, lembra. O abrigo de família também não aconteceu. Eles voltaram para a rua.

“Vocês não nos dão opção”

Restos do que sobrou no Harmonia | Foto: Joana Berwanger/Sul21

O Sul21 visitou o Parque Harmonia na manhã de terça-feira (16). Ao cruzar o pórtico de entrada, em direção aos galpões, um grupo de funcionários da SMAM se encontrava reunido para concluir as ações de sábado. Segundo Aldenise Lopes, da coordenadoria de parques, eles aguardavam orientações sobre como operar, prezando pela manutenção do espaço. “Viemos recolher material”, ela afirmou, apontando para os galpões.

Se em setembro o Parque é vivo e movimentado, neste janeiro o cenário é outro. Mato alto, mobiliário destruído e pertences abandonados às pressas dentro dos galpões. Edson Campos, conhecido como Beiço, questionou um dos membros da Guarda Municipal durante as remoções. “Vocês não nos dão opção”, afirmava, pedindo respostas sobre o que estava acontecendo. “Tu não viu os vídeos?”, ele pergunta. “Foi sem conversa”. Beiço afirma que muitos de seus companheiros perderam documentos. Ele conseguiu reunir parte dos bens em um carrinho e seguiu para outro terreno próximo.

 

Segundo ele, a semana que antecedeu o episódio foi marcada por “visitas” de funcionários da Prefeitura, principalmente da SMAM, em que os moradores eram ameaçados a sair do local por conta do julgamento do ex-presidente Lula. “Fizeram terrorismo puro com eles, tiravam fotos, criavam prazos para que saíssem – um absurdo”, enfatiza Veridiana. Segundo ela, a Prefeitura teria, inclusive, mobilizado a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) para retirar o carro de um dos moradores. “Ele era pintor, perdeu clientes e teve que ir pra rua. Tudo que sobrou foi o carro”, conta a educadora. Não houve resposta da SMAM sobre ações que antecederam a remoção.

Beiço diz que não vê mais como resistir no Harmonia. Após quase oito anos morando lá, ele se sente receoso sobre o que está por vir. “Se formos removidos hoje ou amanhã, para onde vamos?”. Junto com outros companheiros, Beiço pensa em comprar um cadeado para fechar o portão que divide o terreno onde estão da rua durante o julgamento da semana seguinte. “Desse jeito a gente fica aqui quieto sem que nos incomodem”. Ele pede que o aluguel social seja garantido, para que possa procurar por um espaço próprio no Centro de Porto Alegre. “Mas só se me garantirem. Podem até dar previsão e tudo mais, mas a gente tem que ter garantia”.

O MNPR irá realizar campanhas de arrecadação para auxiliar os moradores, especialmente o casal que perdeu o enxoval do bebê recém-nascido. A assessoria de comunicação do DMLU não soube informar qual foi o destino dado aos pertences dos moradores em situação de rua, porém, o MNPR acredita que tudo tenha ido para uma das Divisões de Reciclagem localizadas na Restinga, sendo assim, difícil reaver qualquer objeto.

Confira mais fotos: 

Beiço, ao lado de sua barraca em terreno próximo ao Parque da Harmonia, após as remoções. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Os moradores improvisaram barracas com o que conseguiram pegar às pressas. Foto: Guilherme Santos/Sul21
No Parque da Harmonia, os galpões abrigavam objetos deixados para trás ou destruídos durante as ações de sábado (13). Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

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