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24 de julho de 2017
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16:41

Em nome do ajuste fiscal, Marchezan dá ‘tesouradas’ na educação que afetam os mais pobres

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Decisões de cortes da educação estão dentro da política de contingenciamento de gastos da Prefeitura | Foto: Maia Rubim/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“Vamos ajudar os mais pobres. Os que mais precisam”. Desde a campanha eleitoral do ano passado, o prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) vem repetindo essas expressões como uma espécie de mantra para justificar suas decisões de corte de custos. Seja em pronunciamentos, vídeos ou transmissões ao vivo, o prefeito frequentemente recorre à necessidade de enfrentar os interesses de corporações para poder investir em serviços que atendam as camadas desfavorecidas. Nas últimas semanas, porém, a Prefeitura anunciou uma série de cortes na educação que vão atingir essencialmente aqueles que mais precisam de auxílio do poder público para prosseguir seus estudos. Com o fim do primeiro semestre, foram anunciados cortes do Unipoa, projeto de distribuição de bolsas universitárias voltadas para pessoas de baixa renda, o fim de cursinho pré-vestibular gratuito, que atinge o mesmo público, e mudanças no Educação de Jovens Adultos (EJA), que devem atingir pessoas ainda mais vulneráveis, que sequer completaram o ensino fundamental na idade correta.

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Última a ser anunciada, a mudança no EJA pegou diretores de escolas de surpresa. Na semana passada, ao tentarem fazer novas matrículas para as aulas que começam na próxima segunda-feira (31), deram de cara com uma mensagem de “não permitida” no sistema da rede municipal. Apesar de não terem sido formalmente avisados sobre porque aquilo estava ocorrendo, diretores das 33 escolas da rede municipal que oferecem o serviço passaram a temer que isso signifique o fim do EJA. Na sexta-feira, um dia depois da propagação desse temor, a Prefeitura divulgou nota e um vídeo em que a secretária-adjunta Ivana Flores “nega boatos”, mas confirma que as matrículas do EJA serão concentradas no Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores (CMET) Paulo Freire, escola voltada exclusivamente para alunos do EJA e localizada no bairro Santana, e não mais em cada unidade.

A Smed afirma que a decisão de concentrar as matrículas do CMET tem o objetivo de racionalizar o sistema. Essa racionalização também se estenderá às escolas. Em nota, cita o exemplo da escola Escola Municipal de Educação Básica Dr. Liberato Salzano Vieira da Cunha, que tem apenas 18 alunos do EJA.

Nesta segunda-feira, a assessoria da pasta confirmou que, para evitar os altos custos gerados pela abertura de escolas que possuem poucos alunos, o EJA será concentrado em um número menor de instituições, que servirão como polo em cada região da cidade. A tendência é que moradores da região da Liberato Salzano, por exemplo, tenham que procurar outro colégio para completar seus estudos.

A Smed ainda não definiu quantas serão as escolas que oferecerão o EJA no segundo semestre. A assessoria da pasta informa que isso será definido a partir do número de matrículas efetuadas no CMET, que irá redistribuir os alunos por escola de acordo com o número de interessados em cada região da cidade.

Gestores de escolas, no entanto, salientam que essa racionalização não leva em conta a realidade da maior parte dos alunos e dizem que resultará em uma grande evasão do programa. Como a situação ainda não está clara, eles temem que a oferta do EJA seja reduzida.

Tavama Nunes Santos, diretora EMEF Afonso Guerreiro Lima, localizada na Lomba do Pinheiro conta que soube apenas “por acaso” da decisão da Prefeitura quando foi realizar a matrícula de um aluno do EJA e, posteriormente, pela imprensa. Até a sexta-feira, ela não tinha sido informada oficialmente pela Smed sobre qualquer decisão. “É inimaginável um gestor de escola não ser avisado pela mantenedora”, diz, salientando que havia mandado um e-mail para a diretoria pedagógica da secretaria, mas que não havia recebido retorno. “Discussão, diálogo, com esse secretário [Adriano de Brito] não existe, mas sequer houve o respeito de comunicar uma decisão superior”, afirma.

O EJA atualmente conta com cerca de 6,2 mil alunos matriculados. Somente da Guerreiro, seriam cerca de 200, divididos entre manhã, tarde e noite. A diretora pondera que concentrar o EJA na CMET Paulo Freire pode ter um efeito muito sério na comunidade da Lomba do Pinheiro, que tem locais que estão mais de 20 km distantes do Centro e possui uma média de estudos de apenas 5 anos, segundo dados IBGE e do Observa POA.

“É a pior solução possível. O CMET Paulo Freire é longe para a periferia, para a Lomba, Restinga, Jardim Leopoldina, etc. As pessoas não têm dinheiro para passagem, nem tempo para fazer esse deslocamento. Raríssimos são os casos que moram na periferia e vão fazer matrícula no CMET, só quem tiver a feliz coincidência de trabalhar no Centro”, afirma Tavama.

Diretores reclamam da falta de diálogo por parte da gestão do secretário Adriano de Brito. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Tavama também crítica a opção por concentrar as aulas de EJA em algumas escolas polo. Segundo ela, em razão de a Lomba do Pinheiro ter 36 vilas e muitas delas serem dominadas por facções criminosas diferentes, essa movimentação de uma área para a outra da região pode ser muito perigosa para muitos estudantes. “Eu tenho alunos durante o dia que jamais poderiam frequentar outras escolas. Às vezes não é nem o aluno que é ligado a facções, mas parentes, amigos. As escolas polo vão ficar esvaziadas”, pondera.

Vice-diretora da Escola Municipal Governador Ildo Meneghetti, localizada no bairro Rubem Berta, Ana Clara Oliveira também afirma que foi pega de surpresa. Ela salienta que, entre os cerca de 200 alunos do EJA matriculados na escola, pelo menos 60 são imigrantes haitianos que moram no bairro. “São pessoas que não têm condição nenhuma de ir até uma escola num bairro central. Eles não tem dinheiro para ir até lá. Não tem dinheiro para comer, quanto mais pagar duas passagens para ir ao CMET, que não temos nada contra, ou escolas do Estado, mas têm poucas escolas do Estado que oferecem EJA”, afirma.

Ana Clara destaca que o EJA é uma política oferecida em Porto Alegre há 26 anos e que tem obtido excelentes resultados em termos de melhoria de qualidade de vida dos alunos ao longo do período. “É um retorno maravilhoso para o professor. Tu vê teu trabalho realizado, eles conseguirem sair de uma situação de total abandono para saber o nome do ônibus que tem que pegar, e não mais apenas pela cor. Essa liberdade que vem pela alfabetização é sensacional”, diz. “Não entendo o que passa na cabeça de um gestor para destruir um trabalho tão maravilhoso”.

Para Tavama, no entanto, diminuir a oferta do EJA se insere dentro do que tem sido a política da atual gestão até o momento. “Acho que ficou bastante explícita pela opção do prefeito, por essa decisão, a opção de classe do prefeito, que tem atacado não só a educação, como a assistência social, que incide exatamente sobre a população mais carente”, afirma. Ela teme os efeitos que essas políticas possam ter nas periferias da Capital. “Estamos para entrar em uma situação de colapso na periferia que não sei para onde vai levar em termos de violência”.

Fim das políticas para o ensino superior

Com o objetivo de cortar gastos, a Prefeitura também confirmou na semana passada que não irá mais oferecer vagas no cursinho gratuito de preparação para os vestibulares e para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que estava previsto para começar no segundo semestre.

Programa criado em 2012 para atender pessoas em situação de vulnerabilidade que se inserem nos critérios do Pro Uni, o cursinho gratuito chegou a ofertar mais de mil vagas e, no passado, tinha aberto 700. No orçamento deste ano, havia previsão de que seriam destinados ao programa R$ 609 mil. No entanto, por decisão da Secretaria da Fazenda, o valor foi contingenciado. A secretária-adjunta do Desenvolvimento Social salienta que a decisão foi tomada porque o ensino superior não faz parte das atribuições constitucionais do município na educação, que são a educação infantil e o ensino fundamental. “Em que pese ser uma ótima política social para pessoas que não têm a mesma facilidade de acesso a cursos superiores, no contexto geral da Prefeitura, se chegou a conclusão de que não é uma obrigação fazer um cursinho pré-vestibular”, diz Denise.

Fabiane Pavani, da Atempa | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sob a mesma justificativa de o ensino superior não ser uma obrigação da Prefeitura e da necessidade de focar nos ensinos infantil e fundamental, a Smed já havia anunciado há cerca de duas semanas a decisão de descontinuar o Unipoa, programa que oferece bolsas em faculdades e centros universitários da Capital para estudantes de baixa renda em troca de incentivos fiscais concedido às instituições parceiras. A informação da Prefeitura é que as isenções concedidas pelo programa chegariam a R$ 10 milhões por ano. “Porém, com vistas a honrar o compromisso assumido pela PMPA com os alunos já inscritos, não houve interrupção no programa neste ano de 2017 e ele será mantido para os alunos que continuarem a atender as regras do convênio”, disse a Prefeitura em nota.

Críticas de servidores e da oposição

As decisões da Prefeitura, especialmente a mudança no EJA, foram criticadas pela Associação de Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa), pelo Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) e por representantes da oposição na Câmara de Vereadores. Fabiane Pavani, da Atempa, critica o fato de a mudança ter sido confirmada na véspera das férias, iniciadas nesta semana, e próximo ao início do segundo semestre, marcado para o dia 31. Ela teme que a decisão do governo possa significar o fim do EJA. “O EJA tem uma característica muito específica, os alunos que estão matriculados nos bairros, estão matriculados próximos das suas casas. Isso significa que eles não vão estudar, não existe a possibilidade de se concentrar tudo numa escola. Efetivamente, é o fim de uma política pública”, diz.

Em nota, Simpa, Atempa e o Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e Adultos (Niepe EJA) da UFRGS manifestaram-se contrários ao bloqueio de matrículas na rede municipal de ensino e reclamam também da falta de diálogo da Smed com a comunidade escolar. “Para Simpa e Atempa, a decisão do prefeito fere várias normas legislativas. A EJA, como uma modalidade da educação básica, tem sustentabilidade legal amparada na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação-LDB, nas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação, no Plano Nacional de Educação, em tratados e pactos internacionais, dos quais o país é signatário, bem como as Metas e Diretrizes em relação à EJA, aprovadas no Plano Municipal de Educação (2015-2025). Para o Niepe, o fechamento de matrículas nega o direito à Educação para jovens de 15 a 17 anos que não completaram o Ensino Fundamental, negligenciando o disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, disseram em nota.

Líder da oposição, a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL) afirma que essas mudanças na educação encaminhadas nas últimas semanas se enquadram dentro de um projeto político liberal da atual gestão que tem como pilares “atacar a ideia da educação pública como um direito universal”, atacar os servidores públicos e os professores municipais e, em contrapartida, fortalecer interesses privados a partir do sucateamento dos serviços públicos e de privatizações.

Líder da oposição, Fernanda Melchionna critica decisões do governo Marchezan| Foto: Guilherme Santos/Sul21

“O pré-vestibular é uma politica que busca permitir que jovens possam acessar o ensino superior. Hoje, o município tem 6 mil estudantes no EJA. É uma política de reparação, alfabetização de jovens e adultos, que é parte do pagamento de uma divida histórica que o estado com o seu povo. Uma sociedade tão desigual como a nossa faz com que tenhamos índices alarmantes de analfabetismo, pessoas que são obrigadas a largar a escola, por uma série de razões, como gravidez, violência, bullying, entre outras”, salienta a vereadora.

Ela salienta que uma comitiva de vereadores deve realizar, nesta semana, visitas às comunidades que possuem escolas que oferecem o EJA para saber como ficou a situação das novas matrículas.

O vereador Marcelo Sgarbossa (PT) encaminhou uma proposta de indicação à Câmara de Vereadores para que a Casa cobre Marchezan pela manutenção da descentralização do EJA. “Somos contra qualquer redução no número de vagas e de escolas que oferecem essa modalidade de ensino”, disse o vereador em nota. “Porto Alegre já foi uma referência em educação pública inclusiva e de qualidade. Infelizmente, nossa Capital segue na contramão do processo civilizatório com a extinção de programas e serviços especialmente voltados às parcelas mais vulneráveis da população. Essa decisão autoritária do prefeito traz um novo alerta para os rumos da Prefeitura, que descumpre leis, promove mudanças sem diálogo, demonstrando profundo desrespeito à construção democrática que é uma marca histórica de Porto Alegre”, complementou.


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