Cidades|z_Areazero
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3 de junho de 2017
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11:28

Na periferia, famílias perdem eletrodomésticos e ‘rancho do mês’ com alagamentos

Por
Sul 21
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Odete tira com balde a água que invadiu seu mercadinho, na Vila Liberdade | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre 

“Cada vez que chove dá medo”, diz a comerciante Odete Santos, enquanto limpa o chão do mini-mercado que mantém há 8 anos na Vila Liberdade, bairro Farrapos. Localizado em uma esquina, a porta do mercadinho está a dois degraus de distância da calçada. É mais alto que a maioria das casas do entorno e mesmo assim foi invadido pela água da chuva que caiu essa semana em Porto Alegre. Ela conta que tentou erguer os produtos e pertences, mas não teve tempo de salvar tudo. A balança que usa para pesar as frutas quebrou. Odete ficou mais sentida pela pia que tinha ganho da nora há poucos meses e apodreceu com a água. “Eu tinha vontade de vender [a casa], mas quem vai comprar? Ainda sou doente e estou precisando fazer nebulização de 4 em 4 horas”.

O bairro em que Odete vive foi um dos mais afetados da capital gaúcha e ficou debaixo d’água pelos últimos dois dias. Na quinta-feira (01), às 15h, os moradores protestaram fechando a Free-Way. Eles contam que saíram do local, depois de negociarem com a Polícia Federal, porque a Prefeitura disse que iria até a vila para conversar. “Não apareceram”, reclama Simone dos Santos, presidente da Associação de Moradores.

Simone dos Santos, presidente da Associação de Moradores da Vila Liberdade | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A região dos bairros Farrapos e Humaitá sofre por problemas de escoamento. Na Vila Liberdade, o problema seriam as galerias construídas para dar vazão à água que estão quebradas e a falta de limpeza dos bueiros. Com isso, qualquer chuva que caia é suficiente para alagar tudo e invadir as moradias com água contaminada de esgoto. Uma moradora relata que foi mordida na perna por um rato, trazido pela água desta semana.

“Eles trouxeram os canos para arrumar, da outra vez que alagou, mas faz mais de um ano e os canos ainda estão todos ali. Precisa fazer esse encanamento”, diz Raquel Schmidt, que mora na região há 9 anos.

Nesta sexta, ela e outros moradores voltaram a protestar nas ruas de acesso à Arena do Grêmio, que fica a cerca de um quilômetro de distância. Vigiados por três viaturas da Brigada Militar, eles queimaram sofás e levaram para a rua pacotes de comida – o rancho do mês – que, depois de terem caído na água suja, se perderam. Foi mais uma tentativa de chamar a atenção da prefeitura de Nelson Marchezan Jr. (PSDB). A reportagem do Sul21 esteve no local no final do dia e os moradores ainda não haviam tido retorno do poder público municipal.

“[A água] é contaminada, é fezes, é valão, tudo. Isso aqui qualquer chuvinha alaga. E depois da Arena do Grêmio piorou muito”, diz Simone. Ela lembra que quando o estádio foi construído, havia a promessa de que a empreiteira OAS aplicaria uma contrapartida em obras de infraestrutura na região. Segundo os moradores, o dinheiro teria sido entregue ao Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). “Esse dinheiro, [cerca de R$ 300 mil], nós tínhamos conseguido, só que ele simplesmente sumiu.

Vereadores fizeram visitas para ouvir relatos

Na sexta-feira, moradores organizaram novo protesto para chamar atenção da prefeitura | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O problema da Vila Liberdade atinge 190 famílias. Embora tenha aspectos específicos, também tem semelhanças com relatos de outras regiões de Porto Alegre afetadas pelas chuvas. Nesta sexta, vereadores da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação (Cuthab) estiveram no local para ouvir os moradores e tentar entender a situação que se repete todos os anos.

“Porto Alegre está em colapso. A política de garantia das dragagens e as obras necessárias para evitar que as chuvas tenham um impacto brutal na vida das pessoas, ou estão paralisadas ou não estão ocorrendo há meses. É o caso das dragagens, que não acontecem desde o início do governo Marchezan. Aqui, a obra na galeria, que poderia ajudar a escoar a água, tem os materiais comprados há 4 anos, e também está parada. Obviamente, tem negligência e incompetência do governo passado”, analisou a vereadora Fernanda Melchionna (Psol).

Colega dela de partido, Roberto Robaina, que assumiu o mandato em janeiro, disse que a situação dos bairros alagados é pior do que imaginava. Ele citou o caso da falta de manutenção e limpeza dos bueiros que não estão sendo limpos. A função que agora seria de responsabilidade da Cotravipa, antes estava nas mãos da empresa JD Construções, que esteve envolvida em denúncias de desvios no departamento.

“Desse governo, em seis meses, vimos que mudou a terceirizada, mas os problemas continuam. Vamos ter que exigir do governo explicação de porque não fizeram nada e cobrar. Ao mesmo tempo, impulsionar mobilização da população”, afirmou ele. Mesmo com a situação limite que as chuvas levaram à periferia, o vereador que tenta há cinco meses coletar assinaturas para abrir uma CPI para investigar ações dentro do DEP, não acredita que consiga convencer parlamentares a aderir à causa.

No bairro Sarandi, casas de bomba sem operar 

Moradores da Vila Liberdade levaram comidas que foram perdidas na água suja para protestar | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os vereadores também estiveram no bairro Sarandi. Além dos parlamentares do Psol, André Carus e Valter Nagelstein (ambos do PMDB) – que também integram a Cuthab – acompanharam a visita. Na região, eles visitaram duas casas de bomba que poderiam ajudar a escoar a água e evitar os alagamentos, mas as duas tinham problemas. Uma delas, na Vila Nova Brasília, operando com máquinas antigas, ficou cheia de lixo quando a água subiu e não deu conta de operar com apenas uma máquina. Outra casa, construída há 6 anos com verba do governo federal, tem um problema ainda pior: suas cinco bombas novas nunca foram ligadas.

Na quinta-feira, a água subiu cerca de 60 cm e inundou o pátio do local. Para que a casa fosse posta em funcionamento, seria necessário levantar a rede elétrica (durante chuvas, ela pode deixar todo o local eletrificado e seria um risco a funcionários e moradores), construir a chaminé e um dique de pelo menos um metro de altura, que barrasse a água do arroio que fica a poucos metros de distância. “Se funcionasse aqui, não teria alagamento na Sertório. Mas não é só a casa de bombas, tem que arrumar os problemas da canalização também”, diz Álvaro Beretta, operador de máquinas no local. Contratado há 8 meses, ele conta que tem trabalhado “como um vigia”.

No início da semana, a Cuthab enviou um pedido de solicitação de informações à Prefeitura Municipal solicitando esclarecimentos sobre as verbas enviadas pela União para essas obras. Segundo a Comissão, as informações do DEP e dos moradores seriam “conflitantes” com relação a valores. Em nota ao jornal Correio do Povo, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Smurb) reconheceu “a situação precária” das casas de bomba.

Enquanto isso, vivendo há seis anos na Vila Liberdade, vizinha de um dos estádios de futebol mais caros do país, Loraci Catarina Oliveira diz estar “cansada”. Nas chuvas dessa semana, perdeu máquina de lavar roupa, todo o rancho com o qual passaria o mês e a terceira geladeira.

“Eu me sinto abandonada, um povo que não tem valor para os governantes. Porque a gente é a reba da reba pra eles”, reclama ela. Loraci diz que, apesar das dificuldades não pensa em sair do local, porque não teria para onde ir. “A gente já veio de um lugar pior, achando que ia ser melhor. Eu morava na Vila Esperança (onde hoje está a Arena), morei no valão, depois da Esperança viemos pra cá, com esperança de ter uma vida melhor. Mas isso não é uma vida melhor. É pior do que onde nós morávamos. Lá, pelo menos, não pegava água”.

Funcionários do DEP confirmam que irão fazer intervenções e limpeza das galerias da Vila, neste sábado, para tentar mitigar os problemas de uma próxima chuva. Nas redes sociais do prefeito Marchezan, a única menção aos alagamentos foi a foto de uma reunião realizada sexta para tratar o assunto.

Confira galeria de fotos:

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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