Cidades|z_Areazero
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1 de junho de 2017
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20:54

Alto da Colina: moradores relatam ação violenta de 60 policiais para despejar 6 pessoas

Por
Sul 21
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Retroescavadeira desmancha uma das casas, enquanto comunidade protesta | Foto: A Voz do Morro/Reprodução

Fernanda Canofre

Gislaine Rosa passou a madrugada da quarta-feira, 24 de maio, tirando todos os móveis da casa que levou cinco anos para construir. Carregou para o meio da rua a cama, a geladeira, sofá, televisão, com a ajuda dos vizinhos. Às 6h da manhã, tirou o filho Felipe, de 3 anos, ainda dormindo, do quartinho que tinha acabado de construir para ele. Sem perceber muito o que estava acontecendo à sua volta, o menino foi levado embora do Alto da Colina, lado oeste do Morro Santana. Em duas horas, com o dia amanhecendo em Porto Alegre, a Brigada Militar chegaria ali.

A casa de Gislaine é uma das duas demolidas na quarta-feira passada, na reintegração de posse de uma área de preservação permanente (APP), que pertence à Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), no bairro Jardim Carvalho. A ação, que durou 8 horas, envolveu cerca de 60 policiais militares do Batalhão e do Pelotão de Operações Especiais da Brigada Militar (BOE e POE), da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicleta (Rocam) e um helicóptero, para despejar duas famílias, no total de seis pessoas. Além de Gislaine, o marido e o filho pequeno, na outra casa viviam a irmã dela, o marido e uma criança da mesma idade de Felipe.

Na semana em que se tornou uma sem-teto, Gislaine se reveza entre as casas da mãe e da sogra, que tentou adaptar um quarto improvisado para os três na sala de casa. “Durmo na casa de um, como na casa de outro. Minhas coisas estão todas em uma garagem, na chuva, molhando tudo. Todos os dias meu filho me pede: vamos pra casa, mãe”, diz ela, já sem segurar o choro. “É a coisa mais triste do mundo ter que ouvir ele pedindo pela casa”.

Gislaine também pediu para adiantar suas férias no Hospital Independência, onde trabalha como enfermeira. “Eu trabalho em hospital, eu trabalho com pessoas, mas, não tenho condições de cuidar de pessoas, sendo que eu não estou legal (…) Se não fosse meu filho, já tinha até me matado. Porque tem dias que eu não tenho nem vontade de fazer nada. A vida toda a gente trabalhou para ter aquela casinha, agora a gente não tem mais nada”.

O terreno onde vivem 500 famílias da comunidade do Alto da Colina pertence à Prefeitura Municipal de Porto Alegre, porém, a área onde as casas de Gislaine e sua irmã foram construídas estavam na parte da chamada “faixa de servidão” da CEEE, por onde passam cabos de alta tensão de 230 mil volts. Segundo a empresa, as construções estavam a pouca distância dos cabos e apresentavam risco de morte às famílias. A remoção serviria para “permitir também a manutenção da segurança e da confiabilidade do sistema elétrico”. Os moradores contestam.

Uma vida no Morro

Moradora pede que BM pare de jogar bombas de gás, durante reintegração de posse | Foto: A Voz do Morro/Reprodução

Gislaine chegou ao morro com sete anos de idade. Passou ali os últimos 20 anos de sua vida. Foi no Morro que conheceu o marido, com quem está há 6 anos. Quando criança, ele costumava visitar a avó que vivia no local e há 8 anos se mudou junto com os pais para lá. Pouco tempo depois, ele e Gislaine foram viver juntos, derrubando a casa de madeira que tinha sido dos pais dela e construindo uma nova de alvenaria. A mesma que os dois viram ser derrubada na semana passada, por uma retroescavadeira.

A CEEE afirma que as duas casas alvo da ação não estavam no local há seis meses. Gislaine, porém, mostra uma pasta de notas fiscais e boletos das prestações que foi adquirindo para comprar tijolos, tinta, telhas. Ela diz que “não teria condições, com o salário que ganha” de construir uma casa como a sua dentro do tempo que a empresa afirma.

Ela também conta que só foi notificada sobre a ação de despejo na quinta-feira, 18 de maio, seis dias antes da ação de despejo ser executada. Descontando sábado e domingo, Gislaine teve só três dias para correr atrás de uma solução. Na véspera do despejo, os moradores entraram em contato com o Grupo de Assessoria Popular (GAP), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pedindo assistência. Os advogados entraram com pedido de suspensão da reintegração, solicitando mais tempo para examinar o caso. Além do aviso em cima da hora, o sistema de consulta de processos do Tribunal de Justiça estava fora do ar. O pedido foi negado.

Durante o despejo, os moradores reclamavam do fato de que não foi oferecida nenhuma alternativa às pessoas, um lugar para onde poderiam ir e se haveria indenização. Em um vídeo publicado nas redes sociais pela rádio comunitária A Voz do Morro, um morador conversa com a oficial de justiça e pergunta: “obviamente, vocês como lei, já providenciaram um lugar para deixar elas”. A oficial, que olha para cima, por onde sobrevoa o helicóptero da BM, responde: “Não”. “Eles vão ficar na rua?”. “É assim”.

Gislaine conta que fez a mesma pergunta, para a mesma oficial. A resposta, segundo ela, veio em tom seco: “Se vocês não tem onde botar as crianças, a gente leva para o Conselho Tutelar”. “Daonde que eu faria isso? Criança que a gente cria com o maior amor e carinho. Ele não está abandonado pra ir para um Conselho Tutelar. Ele tem família”, diz indignada.

A ação da polícia

Na última quarta-feira (31), moradores do Alto da Colina lotaram a sessão da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa para denunciar a violência da Brigada Militar durante o despejo. “O Comandante disse assim: vocês têm 5 minutos para se retirar. Retira agora ou vamos começar a reagir. E vieram as bombas de gás”, conta o pastor Marcos Antônio Toledo dos Santos.

No dia do despejo, pela manhã, Teresinha da Silva Oliveira Vargas estava se preparando para ir trabalhar quando a confusão começou. Como tem um problema nos ossos, o marido costuma levá-la de carro até o ponto de ônibus para que ela não tenha que descer a ladeira. Segundo ela, os vizinhos formaram barricadas para impedir a chegada da polícia, mas mantinham as mãos ao alto. Teresinha estava no meio do caminho quando as primeiras bombas de gás lacrimogêneo começaram a estourar.

“Eu tenho dificuldade para correr, para respirar e começaram a vir aquelas bombas. Tentei correr e não consegui. Minha filha desesperada, pedindo socorro, para eles pararem de jogar as bombas e continuou vindo. Só lembro de cair, porque eu vi o vídeo de eu sendo carregada. Meu filho desceu e eles continuaram atirando bomba, não queriam deixar as pessoas virem me socorrer. E a minha filha gritando, dizendo: socorro, socorro! Eu acordei no chão, praticamente arrastada, suja, molhada, com o senhor da ambulância vindo”, relatou ela aos deputados. Teresinha, que tem problemas nos pulmões, disse que ainda sofre com os efeitos do gás inalado.

Moradora do Alto da Colina mostra a perna atingida pelos disparos de bala de borracha | Foto: Arquivo Pessoal

Uma senhora com mais de 60 anos, que filmava a ação da polícia, foi atingida com três tiros de balas de borracha nas pernas. Várias mulheres, uma delas grávida, contam terem sido revistadas e agredidas por policiais homens. Fabiano Vargas, presidente da Associação de Moradores, disse que os policiais mandaram que ele apagasse os vídeos que tinha no celular, o algemaram e mandaram que colocasse as mãos acima da cabeça ou iriam atirar.

Uma semana antes do despejo, outro morador havia perdido a casa, expulso por uma facção. “Às vezes, as facções guerreiam entre elas e a polícia não sobe. O que chamou nossa atenção nesse dia foi que tinha Choque, viaturas, Rocam, helicóptero”, disse Fabiano na ALRS. Ele conta que a sogra precisou de assistência uma noite e a Samu também teria se recusado a subir até a comunidade. Outra vez, quando a casa de uma moradora pegou fogo, o Corpo de Bombeiros, que também estava com um carro na ação, levou mais de duas horas para chegar.

“A questão da ação truculenta da Brigada Militar em reintegrações de posse nos preocupa muito”, afirma Luciana Artus Schneider, da Defensoria Pública do Estado. Ela diz que a DPE está tentando contatar o novo comando da BM para criar um protocolo para ações do tipo. “Nós vemos que os moradores se sentem muito injustiçados nestes casos, então eles se colocam numa posição de resistência muito forte e a Brigada tem que estar muito preparada para cumprir esse tipo de ação de forma tranquila, de forma profissional e jamais com truculência”.

Na Assembleia, os moradores relataram que, na última semana, brigadianos têm circulado pela região à noite fazendo ameaças. “Os cachorros começam a latir e as pessoas nem saem mais para a rua. Ficam as viaturas no escurinho, que tem as ruas escuras, ali eles deixam os carros e sobem a pé”, conta Teresinha. Segundo ela, ainda não conseguiram identificar se são os mesmos policiais que participaram da ação de despejo, mas acreditam que sim. “[Eles diziam]: ah, tu vai ter que se mudar do morro, nós vamos caçar vocês. Meu filho estava de cara limpa. Tudo porque eles ajudaram a defender as pessoas e porque a polícia, para eles, tudo que mora em morro é vagabundo, é marginal”.

Fabiano Vargas durante depoimento à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da ALRS | Foto: Maia Rubim/Sul21

A Comissão de Direitos Humanos vai reunir vídeos e provas e encaminhar à Corregedoria da Brigada Militar e ao Ministério Público Militar, pedindo esclarecimentos para o caso. Procurado, o Comando da BM disse que “a pessoa que se achar vítima tem que se dirigir à Ouvidoria”. A corporação não se manifesta antes de ter registros oficiais sobre o caso.

“Eles trataram a população como se a gente fosse cachorro, marginal. Todo mundo é trabalhador, todo mundo tem carteira assinada. Se a gente mora lá é porque a gente não teve outra opção, entendeu?”, diz Gislaine, enquanto segura o filho. “A gente nunca teve água, nunca teve luz, nunca teve esgoto. Nunca foi fácil a nossa vida. Agora, com o maior esforço desse mundo, a gente conseguiu uma casinha. Construir, pra eles chegar da noite para o dia e derrubar tudo”.


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