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26 de março de 2017
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19:22

Escritor recupera uma Porto Alegre de ‘relatos insólitos’ com crimes, romances e política

Por
Sul 21
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Autor de vários livros sobre a memória histórica da capital, Rafael Guimaraens agora lança obra sobre casos “reais e surreais” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

A paixão de um pianista cego do Café Central pela garçonete que era tratada como “a moça mais feia da cidade”. O suposto assassinato de um agente da Interpol, filho de russos, nascido na Manchúria, que veio se esconder em Porto Alegre com a companheira. A fuga de dois presos da Ilha do Presídio a bordo de panelões, pelo Guaíba. O chapéu perdido pelo ator Tyrone Power, numa parada rápida de 20 minutos no Aeroporto São João. O noivado rompido de Araújo Vianna, depois que o compositor descobriu uma doença. O amor entre duas mulheres que foram presas por matar um homem que não aceitava o “não”. Todos relatos que aconteceram em uma Porto Alegre da qual pouca gente lembra e que se perdeu nas mudanças de horizontes da cidade.

Essas e outras histórias estão reunidas no livro “20 Relatos Insólitos de Porto Alegre”, do jornalista e escritor Rafael Guimaraens, lançado esta semana, no aniversário de 245 anos da capital gaúcha. São casos de personagens famosos e anônimos, crimes, romances e movimentações políticas do Rio Grande do Sul, que usam como pano de fundo as transformações que a própria Capital foi sofrendo ao longo dos anos.  

Esse não é o primeiro livro de Guimaraens em torno da memória. Em outras obras, ele já havia falado sobre a enchente de 41, a morte do Sargento Manuel Raimundo Soares, no infame Caso das Mãos Amarradas e sobre um assalto a uma casa de câmbio, em plena Rua da Praia.

“Meu esforço, quando faço meu trabalho de contar essas histórias, também é no sentido de querer manter o interesse das pessoas por essas coisas. As pessoas que leem meus livros, têm essa preocupação de gostar da cidade e querer saber como foi, como funcionava, como as relações dentro da cidade se estabeleciam”, explica Rafael.

Para recontar histórias baseadas em “fatos reais e surreais”, que nem sempre tinham documentação suficiente em torno delas, o autor também diz que recorreu a uma “dosagem generosa de inventividade”. Em algumas, ele optou por mudar nomes de personagens por isso. As narrativas dentro do livro se alternam entre reportagem, contos, folhetim e roteiro de cinema, na maioria das vezes introduzidas por um “repórter” que passava pela cena onde acontecem.

“Em algumas histórias há uma busca da fidelidade aos fatos, quase como se fossem reportagens e, em outras, o fato é apenas o ponto de partida que eu vou construir”, conta o autor. Foi assim que ele desenvolveu capítulos como o que narra a história do assassinato da “Negra Inácia”, uma mulher que usava religiões de matriz africana e receitas para ajudar a curar doenças de toda a gente, mas que acabou sendo alvo da ira de uma família italiana. Depois de terem recorrido à Inácia como curandeira, os italianos passaram a acusá-la de chantagem, o que acabou levando ao crime. Rafael encontrou a história em uma notinha de poucas linhas, em um jornal do início do século XX, debaixo do título: “Assassinato por causa da feitiçaria”. Ele teve que desenvolver todo o resto a partir de estudos sobre a época e de ficção própria.

Casarão na rua Duque de Caxias, onde Júlio de Castilhos viveu seus últimos anos, também foi palco do suicídio de sua esposa | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A história da viúva de Júlio de Castilhos

Outro dos casos contados no livro – um dos favoritos do próprio escritor – é o suicídio da viúva do político Júlio de Castilhos. Derrubado por um golpe, no seu primeiro mandato como presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos se elegeu mais uma vez em 1893, como candidato único no Estado, e no mesmo ano enfrentou a Revolução Federalista. Sua morte aconteceu 10 anos depois, por um câncer de garganta. E ele veio a falecer no casarão da família, que ainda resiste na Rua Duque de Caxias, a uma quadra da sede do governo do Estado.

Rafael reconta a história do suicídio através das cartas enviadas para Honorina, a viúva, pelo marido e reconstrói o fim da vida de uma mulher que não soube ser sem ter a figura do marido ao lado. “Sem a ti, a vida é a morte/O mundo-cárcer fechado…”, recitava Honorina pela casa, relendo um verso de Castilhos para ela. Para Rafael, a tragédia da viúva é a tragédia de muitas mulheres da época que, de repente, viam suas vidas esvaziadas de sentido porque perdiam o único papel que lhes era permitido na sociedade: de mulheres do lar.

Júlio de Castilhos com a mulher, Honorina, e os cinco filhos | Foto: Libretos/Divulgação

O caso da viúva de Júlio de Castilhos aponta ainda para outra questão. O abandono de locais históricos de Porto Alegre, que parecem destinados a viver apenas na memória dos livros. A casa da família se transformou no primeiro museu do Rio Grande do Sul e funcionou como tal até pouco tempo. Porém, segundo funcionários, no temporal de janeiro de 2016, o edifício foi destelhado, deixando entrar água no local, o que afetou o acervo e o piso. O museu está interditado desde então e não há previsão de obras.

O local da casa de Júlio de Castilhos é um dos únicos pontos dos relatos que ainda podem ser reconhecidos hoje em dia. “Se perdeu muito da paisagem da época, muitas coisas, devido à mobilização da sociedade, dos arquitetos, das organizações de preservação, se conservaram devido a muita luta – como é o caso do Mercado Público. Mas muita coisa se perdeu. Isso não tem volta”, lamenta Rafael. “Se a geografia, a topografia é o corpo de uma cidade, a memória é a alma. A cidade que a gente vive é fruto do trabalho de gerações e gerações e a arquitetura e prédios históricos são desenhos dessa construção coletiva. No momento que esses prédios se deterioram e não são cuidados, essa história também se esvai”.

Retrato além da época

Número 1510, onde teria sido o consultório do Professor Hindu, não existe mais na atual Rua dos Andradas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Se os critérios para a seleção de histórias que entraram no livro seguiram o “insólito”, a escrita tentou trazer retrato dos costumes e da maneira de pensar de uma época – não tão diferente de hoje sob vários aspectos. Os relatos incluem desde a história do filme francês que foi censurado no cine Cacique, graças aos protestos de jovens do Partido Democrata Cristão, até o sequestro de um casal de integrantes da peça Roda Viva, texto de Chico Buarque, dirigido por Zé Celso Martinez, que foram sequestrados por um grupo de “vigilantes” sempre prontos a defender a família gaúcha. A peça, que já havia sofrido retaliações em São Paulo, no mesmo ano em que o governo militar aprovaria o AI-5, aqui, foi apresentada para um Teatro Leopoldina lotado. Na manhã seguinte, a resposta veio em forma de pichações e ataques ao elenco que se encontrava em um hotel no centro da cidade.

O Professor Hindu em um lado que tentava esconder da sociedade: como a transformista Danúbio Azul | Foto: Libretos/Divulgação

O livro que reconta a Porto Alegre de ontem, revive vários preconceitos de hoje. Como a história do Professor Hindu, que além de ser um famoso místico com escritório na Rua da Praia, levava uma vida secreta como a transformista Danúbio Azul. Acusado de ter incentivado uma cliente a cometer suicídio, a carreira do professor ruiu quando os jornais trouxeram fotos suas em drag (vestido como mulher), junto a legendas irônicas. Ou ainda sobre como a sociedade reagiu a história da mulher que matou o ex-companheiro e agressor de sua namorada.

“Cada época tem seus códigos próprios de comportamento, de tolerâncias, de não-tolerâncias. A gente imagina que o mundo vai evoluindo, que esses preconceitos vão caindo, que a tolerância aumente, que a disposição das pessoas para aceitar o diferente se torne uma coisa mais [natural]. No entanto, várias histórias em que há conflito e preconceito, a gente vê que eles ainda se manifestam hoje. A homofobia, o machismo, o racismo, a intolerância, a manipulação das pessoas, a gente vê muito ainda”.

O autor conta que deixou várias histórias de fora e não descarta fazer outro volume. Segundo ele, as que ainda não entraram em “20 Relatos” é porque não estavam bem resolvidas no texto. O que ele ele espera delas é que mexam com o leitor: “Várias histórias tratam de preconceito e de reações das pessoas, diante de coisas que elas acham surpreendentes. Isso me interessa muito, o fato só tem importância quando junto com ele está o impacto que ele causou”, diz Rafael.


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