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1 de novembro de 2015
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11:00

Medo de perder o que sobrou e falta de alimentos: moradores relatam dificuldades após enchente

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Ilha Grande dos Marinheiros foi o local mais afetado pelas chuvas e enchentes em Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Após a água finalmente baixar nas ilhas de Porto Alegre nesta semana, as últimas famílias que estavam em abrigos da prefeitura retornaram para casa na última quarta-feira (28). Contudo, o retorno da rotina à normalidade ainda está distante para muitas delas. Para alguns, o desafio é reconstruir as casas, para outros é ter o que comer após ficar semanas sem conseguir trabalhar.

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Sueli dos Santos, 41 anos, mora com sete pessoas – o marido, três filhos, um neto, um genro e uma nora – em uma casa na Rua Nossa Senhora Aparecida, a principal da Ilha Grande dos Marinheiros, área de Porto Alegre mais afetada pelas enchentes das últimas semanas. Em alguns locais da região, a água chegou a superar 2 metros do nível da rua.

Sueli conta que, inicialmente, se abrigou em uma barraca montada em um terreno mais alto que pertence ao vizinho. “As crianças dormiam na barraca e os outros ficavam acordados para não deixar ninguém roubar”, diz. Após quatro dias, no entanto, seus filhos não aguentaram mais. “Minha filha começou a chorar porque estava com muita dor nas costas, não tinha colchão, nem nada”, diz. Enviou-os para a casa de um tio, que mora na Vila Cachorro Sentado, próximo à Av. Ipiranga, em Porto Alegre.

30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Casa de Sueli está sendo reconstruída por familiares e amigos | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Dias depois, quando a água baixou, conseguiu voltar para casa, mesmo ainda alagada. “Eu e o meu marido ficamos dentro de casa, dentro da água, para não roubarem o que a gente tem. É pouquinho o que a gente tem. São uns caquinhos, mas é da gente. E se roubar vai fazer falta”, diz.

Sueli diz que não perdeu muita coisa, só roupeiros e uma cama, mas o estrago maior foi na estrutura da casa, que precisa ser refeita. A prefeitura diz que o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) irá trabalhar na reconstrução de casas utilizando materiais doados pela população. Como não pode esperar pela ajuda, a família de Sueli já está reconstruindo a casa. “Até agora, ninguém me deu nada. Eu estou desmanchando o que sobrou e montando outra. Com as madeiras velhas que eu tinha”, explica.

Apesar de ter voltado para casa, ela diz que a vida está mais difícil que antes. “É difícil porque tu não tem como trabalhar, não tem de onde tirar”, diz Sueli, que ainda não conseguiu retornar ao trabalho de reciclagem, de onde tirava entre R$ 100 e R$ 160 por semana.

Só com a renda do marido, que recebe um salário mínimo de seu emprego em uma empresa de ônibus, diz que está com dificuldade para conseguir alimentos e que as doações que ganhou foram insuficientes. “Para te dizer bem a verdade, eu e os meus vizinhos mais perto, não ganhamos. Se ganhei doação, foi duas vezes só”, diz. “Cada vizinho botava um quilo de arroz, outro botava uma massa, uma carne, para todo mundo poder comer. Um apoia o outra, é o único jeito de se manter”.

30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sueli se emociona ao falar das dificuldades que segue enfrentando por causa das enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Segundo a Defesa Civil, todas as famílias afetadas pelas chuvas receberam doações e equipes do órgão usaram barcos para ir de porta em porta atender quem ficou ilhado. No braço norte da ilha, área mais afastada onde inclusive muitas famílias seguem isoladas, a entidade diz que utilizou um helicóptero para entregar alimentos para as famílias que não quiseram deixar suas casas.

Contudo, a entidade reconhece que, após as famílias terem voltado para casa, a prioridade já não é mais doar alimentos. A indicação é de que os moradores que necessitam de alimentos procurem o Centro Administrativo Regional (CAR), localizado na Ilha da Pintada, para receber doações. Apesar disso, uma caminhonete cheia de alimentos teria sido encaminhada para a Ilha Grande dos Marinheiros na tarde de sexta (30).

“Tem gente que tem um supermercado”

Moradores, no entanto, contam uma versão diferente daquela informada pelo poder público. Alguns dizem que muitas vezes as doações só chegavam quando uns ajudavam os outros. Durante as chuvas, os barcos de pesca se transformaram no único meio de transporte possível para chegar às casas mais afastadas da Ilha Grande dos Marinheiros.

Vilmar Pinheiro, 42 anos, que tem um comércio na entrada da ilha, reconhece que a Defesa Civil foi muitas vezes ao local, mas salienta que, em parte das ocasiões, entregava as doações na entrada e esperava que outros moradores distribuíssem para as casas inacessíveis por terra, o que nem sempre acontecia. “Eu sei que tem muita gente reclamando lá pra cima. Aqui pegaram muita coisa. Tem gente que tem para abrir um mercado”, diz.

30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Casas na Rua Nossa Senhora Aparecida ficam muito próximas ao Rio Jacuí | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Uma das pessoas que ajudou a entregar donativos foi Santos Clei Alves Moraes, uruguaio que mora em Porto Alegre desde 1972 e, há 20 anos, na ilha. Mecânico e pescador, por 18 dias ficou sem conseguir ir ao trabalho, em uma oficina no bairro Humaitá. Em compensação, passou o período ajudando a transportar doações e pessoas entre a entrada da ilha e áreas que chegavam a estar cerca de 2 metros embaixo d’água. “Às vezes, a gente ia 4,5 km lá em cima para buscar as pessoas e depois descer. Depois, de tardezinha, fazia de novo”, diz Santos, que não ganhou nada para realizar este trabalho.

Santos só conseguiu ficar em casa porque mora no segundo piso. No primeiro, por sorte, fica apenas uma cozinha já abandonada. Contudo, sua mulher, filha e neta, tiveram que se mudar para a casa da sogra da jovem para escapar das dificuldades. Nesta sexta, ainda não tinham retornado. Questionado como se manteve durante o período que não conseguiu trabalhar, diz que recebeu rancho da prefeitura, além de doações angariadas pela associação de moradores local e deixadas na entrada da ilha por empresários.

30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21

De malas prontas para Rio Grande

Apesar das dificuldades, Santos diz que não pensa em se mudar. “Eu adoro aqui”, diz o uruguaio. Por outro lado, há famílias que já estão com as malas prontas.

A casa em que Kátia Maria da Silva, 41 anos, mora com o marido e os filhos de 8 e 13 anos foi atingida em cheio pela enchente na ilha dos Marinheiros. Tirando um freezer e uma geladeira que conseguiu salvar, ela diz que perdeu quase tudo. “Não teve como salvar. A minha casa ainda está secando, está mofando”, diz. “Nossa família vai recomeçar em outro lugar”, complementa Kátia, que, ainda em novembro, planeja se mudar para Rio Grande, onde a mãe mora e onde o marido já tem dois empregos em vista.

Moradora da ilha há 21 anos, ela diz que nunca tinha enfrentado uma enchente como essa antes. Ela conta que a água batia na altura do peito dentro de sua casa. Sem condições de permanecer no local com as crianças, passou duas semanas na casa de uma conhecida na entrada da ilha. O marido ia de dia para lá e retornava à noite. “Voltava para cuidar das coisas”, diz.

Doações ainda são necessárias

Nas últimas semanas, moradores de Porto Alegre foram responsáveis por uma onda de solidariedade poucas vezes antes vista. No Ginásio Tesourinha, onde ficaram 230 desabrigados da Ilha Grande dos Marinheiros, toneladas de roupas e alimentos foram recolhidos. No entanto, a Defesa Civil salienta que, mesmo com o Guaíba e o Jacuí retornando ao normal e sem expectativa de novas enchentes nas próximas semanas, as doações ainda são aguardadas.

Com o posto de recolhimento de doações do Tesourinha fechado, a Defesa Civil receberá, a partir de terça-feira (3), das 9h às 17h, roupas e alimentos em sua sede, na Rua Doutor Campos Velho, 426. Para quem deseja doar materiais de construção, móveis, eletrodomésticos e lonas para ajudar na reconstrução das casas, a Prefeitura solicita que estes produtos sejam entregues na sede do Demhab (Av. Princesa Isabel, 1115).

30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
30/10/2015 - PORTO ALEGRE, RS, BRASIL - Moradores das ilhas ainda sofrem com a situação após as enchentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21

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