Eles estão de volta. As cabeças desengonçadas, os olhos esgazeados, as mãos voltadas para dentro, os pés trôpegos de Jânio, os beiços botocados, as palavras pendendo com a baba: “Vai pra Cuba!”, “Paguei 15 mil por essa Vuitton!”, “Comprei esse Bulgari em Beverly Hills, lindo né?”, “Ai meu Deus. Nem te conto. Eu perco o juízo quando vejo uma Balenciaga…”.
Eles estão de volta. E com eles, o taque-taque compulsivo das mandíbulas: “Não dou mais essa água pro meu pet. Ele só toma Perrier”, “Você viu esse povinho nos aeroportos?”, “Nem me fala! E as roupas deles : havaianas, blusinhas fake da 25 de Março…”, “E ainda querem que eu pague previdência pras empregadas. Onde já se viu?”, “Mas o pior são os impostos”, “Pois, é. Meu marido sempre fala que, depois, se a gente sonega, acham ruim”, “É, assim não dá”.
Eles estão de volta. Deixaram as quadras de tênis, os campos de golfe, o iate em Ilhabela, as picaretagens na Bovespa, o instituto Millenium, a grana nas ilhas Cayman e se instalaram na ala VIP do Itaquerão. As palavras de novo. As que disseram: “Vai tomar no cu!”. E as que não disseram mas talvez dissessem: “Bolivariana!”, Terrorista!”, “Amante da gentalha!”
Eles estão de volta. Em 1964, ergueram-se dos sepulcros, sacudiram as teias e saíram arrastando suas figuras patéticas pelas ruas e avenidas: comedores de hóstia, moralistas de cuecas, puxadoras de terço, duces de opereta, o sinistro CCC, mal-amados e mal-amadas balbuciavam “Um, dois, três, Jango no xadrez”, “Verde e amarelo, sem foice nem martelo”. A infecção se espalhou e epidemia fez vítimas durante 21 anos.
Eles estão de volta. Os sintomas da doença são os mesmos: ódio febril, ressentimento crônico, preconceito agudo, medo mórbido, complexo de vira-lata. Procura-se o Paciente Zero. As primeiras suspeitas apontaram para um assinante da Folha de S. Paulo. Foi visto com esgares e repuxos musculares ao ler o editorial que tratava a ditadura de 1964 como “ditabranda”, expressão antes usada pelo general Pinochet. Latente, o vírus teria acordado uma semana num sonho molhado com o general Médici. Porém, a maioria dos pesquisadores coincide em indicar o Paciente Zero como um paulistano do Morumbi e leitor de Veja. Ao ver aquela capa informando que os estádios da Copa somente ficariam prontos em 2038, teve salivação intensa e violentas convulsões. Com o exemplar debaixo do braço, mordeu a mente de sua mulher, atacou os filhos e até o cachorro do vizinho. Virando e revirando o pescoço sobre seu eixo, tuitou e foi retuitado.
Eles estão de volta. São as classes ruminantes, rapaces, reverentes à alta cultura de Miami e seus penduricalhos. Não puxam mais terço. Oram nos altares dos shoppings. O balbucio retórico é outro mas o medo é o mesmo. O medo “dos de baixo” como em 1954, 1961, 1964, 1989, 2002, 2006, 2010. O medo próprio de quem não tem voto. O medo do voto.
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Ayrton Centeno é jornalista.