Opinião
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31 de julho de 2014
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08:19

Da Patologia à Cidadania (por Célio Golin)

Por
Sul 21
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Da Patologia à Cidadania (por Célio Golin)
Da Patologia à Cidadania (por Célio Golin)

Reflexões sobre a situação de gueis, lésbicas, travestis e transexuais na sociedade brasileira.

Se hoje falar de direitos de lésbicas, gueis, travestis e transexuais é algo rotineiro, em 1991 quando surgiu o Nuances isto ainda causava muita desconfiança e dúvidas por parte de muita gente. Muitas pessoas inclusive gueis, questionavam a validade de tratar destas questões na sociedade, pois, para estes, o armário ainda era a melhor opção. Nós do nuances, sabíamos que o processo que excluía estes sujeitos do direito à cidadania tinha razões culturais. O primeiro passo foi se articular politicamente e propor o debate público, rompendo com a clandestinidade que o tema sempre foi tratado.

Quando se fala de sexualidade, é bem comum aparecerem argumentos do tipo: a sexualidade é privada e diz respeito a cada um. Este argumento não explica nem da conta das várias situações onde os sujeitos são expostos, na sua intimidade, a situações de violência e de constrangimento moral em virtude de sua sexualidade. Este contexto nos permite entender que a sexualidade, apesar de ser de foro íntimo, na nossa cultura é uma questão moral que é usada para qualificar e desqualificar os sujeitos e por isto é pública e política.

A sexualidade aparece nas mais variadas situações na vida das pessoas, como trabalho, escola, família nos espaços públicos, sempre permeadas por relações de poder. Nesta medida, ela rompe com o privado e se torna mais uma das questões de interesse social e coletivo. É por este motivo que existe o movimento organizado, para denunciar e expor esta demanda relativa a pessoas que sempre estiveram de alguma forma excluídas e invisibilizadas do processo democrático.

Para compreendermos o local social e político aos quais os homossexuais[1] vivem, é necessário ter uma visão histórica dos processos que se constituíram através das relações de poder que a humanidade vem construindo. Não podemos deixar de salientar que a sexualidade humana sempre foi alvo de muita disputa, por se tratar de uma das manifestações mais importantes da vida das pessoas e, por consequência, da própria sociedade.

São vários os fatores e momentos históricos nos quais a sexualidade foi tratada pelas instituições de poder como: Religião, Ciência e Estado através de leis criminalizando os atos homoeróticos, pela política através de leis preocupada em proteger a família dos desviantes, a ciência, psicologia, psiquiatria, tentando explicar o que deu errado no processo de formação, e hoje, mudando o foco, pelas ciências sociais, antropologia, com uma abordagem de cunho social, sem procurar causas e sem valoração moral.

Neste processo histórico, foram muitos os tipos de tratamentos dados aos homossexuais, dependendo da cultura, das relações de poder de cada época e principalmente da moral sobre a sexualidade. Todas estas instituições e poderes em maior ou menor grau colocaram de forma majoritária a sexualidade dos homossexuais numa perspectiva negativa e sempre associada a um tipo de desvio moral, sexual e de caráter. A naturalização da sexualidade ligada à reprodução como fim, defendida pela religião católica e fundamentalistas como algo divino, não corresponde às práticas sexuais vividas pela maioria esmagadora das pessoas. Pergunto: O que tem de natural na sexualidade humana? A sexualidade é só para reprodução? As pessoas vão para a cama para reproduzir ou para ter prazer?

Todo este histórico contribui decisivamente para alimentar o senso comum da população que percebeu na sua grande maioria, os homossexuais como cidadãos de segunda categoria, e como conseqüência legitimando atitudes de exclusão e violência.

Hoje a forma de como o debate vem se constituindo, mudou o foco, rompendo com explicações dos porquês, da condenação moral para o direito à privacidade, direitos civis e à dignidade humana. A visibilidade rompe com a clandestinidade e com a visão destas pessoas, como imorais, pervertidas ou desviantes. Reflexo disso é os jovens protagonizando sua história, pois já têm outros referenciais que não aqueles negativos, pejorativos, mas como afirmação da cidadania e do direito à liberdade e ao prazer.

Temos clareza que hoje estamos num outro momento, que requer outras estratégias no debate e nas disputas políticas, pois os conservadores estão por ai, e todo este reconhecimento social que temos conquistado provoca reações de conservadoras e fundamentalistas.

A grande visibilidade política e principalmente as paradas, que apesar das críticas de alguns, de ser uma festa, têm um componente político fundamental neste processo. Em 1997, quando o nuances organizou a primeira Parada Livre sabia que as ruas eram lugar de luta. A decisão do STF, de reconhecimento das relações homossexuais é o reflexodas Paradas que acontecem em todo o país. A sexualidade exposta nas paradas vem mexendo com os setores conservadores que reagem com um discurso usado em décadas passadas, de atacar os homossexuais, colocando-os como vilões da decadência da moral familiar, associando as velhas questões como prostituição, abuso sexual e pedofilia. Esta visão se confirma pelo discurso proferido pelo  deputado federal do Partido Progressista Luis Carlos Henze, que disse que negros, índios e gueis é tudo o que não presta na sociedade.

Estas declarações acabam contribuindo para legitimar agressões que gueis, lésbicas transexuais e travestis vêm sofrendo em pleno espaço público, como as que aconteceram em plena Avenida Paulista. É importante ressaltar que, nestes eventos de violência, a opinião pública, a polícia e a própria mídia, na maioria das vezes, têm se colocado de forma solidária e dando um destaque importante para o tema, coisa que alguns anos atrás não se via, mostrando que o cenário é outro.

O movimento social como protagonista de uma nova agenda para o debate público, vem propondo uma nova dinâmica no debate em torno da sexualidade e da luta por reconhecimento de direitos. As ONGs trazem com suas demandas políticas, questões que rompem tabus, até então cristalizados no senso comum da sociedade. Reflexo disto é o interesse que faz com que a academia cada vez mais desvende e perceba que existe uma complexidade muito grande nas expressões das sexualidades. São vários os trabalhos e áreas envolvidas no assunto. O que vem contribuído para isto é a visibilidade dos comportamentos e formas de sociabilidades desta população e expressões de sexualidades.

O espaço da margem revela uma riqueza muito grande de possibilidades, que move todo um campo da sociedade que encontra neste ambiente marginal, a possibilidade de realização de desejos fora dos padrões reconhecidos e legitimados socialmente. A prostituição, tanto das travestis de garotos de programa, é um dos tabus mais polêmicos para nossa moral sexual, inclusive para muitos grupos de militância guei. Muitos gueis higienizados e conservadores condenam a visibilidade dos corpos nas paradas e ingenuamente acham que se submetendo a lógica heterossexista vão garantir direitos. Isto é importante ressaltar para desmistificar a idéia de que os gueis, lésbicas, travestis e transexuais estão num mesmo campo político. A sexualidade é uma das expressões que compões a personalidade e ideologia dos sujeitos. O nuances já rompeu com esta visão há muito tempo.

Na verdade o campo da prostituição traz a tona outros atores sexuais “invisíveis” para o debate, que são os clientes que usufruem destes serviços. A condenação moral que sofrem as travestis e garotos de programa, nunca vem acompanhada pelo outro lado da moeda, que são quem os procuram, e porque os procuram.

Para o nuances, o debate em torno da sexualidade sempre foi prioritário, pois entendemos que o poder de contestação a partir do que é considerado marginal nos possibilita a desconstrução da moral heterossexista e cria novos paradigmas sobre o uso do corpo e da sexualidade, inclusive questionando a falsa normalidade da heterossexualidade.

No campo do direito, também existem formas próprias de entender a questão. O termo homoafetivo, muito em voga hoje, defendido a partir da idéia, de que, para garantir direitos se usa o argumento da afetividade, do amor como elemento central empobrecendo o debate. Outra linha de abordagem na qual o nuances acredita e luta, é que a conquista de direitos devem se dar pelo princípio da dignidade humana, onde o debate não fica refém da heterossexualidade como parâmetro.

Fernando Pocahy (2009) fala num giro vertiginoso, nos idos dos anos 80, que reordena não somente a pauta da agenda do movimento homossexual mundial e o recém estruturado movimento brasileiro. A aids passa a funcionar como uma marca nova e central na ação do dispositivo da sexualidade reformatando as culturas sexuais mundiais, figurando como uma questão que dizia (diz) respeito às vidas marginais e como um castigo ou presunção do adoecer como signo de morte. Deparamos-nos com uma virada política no movimento de liberação homossexual, cuja palavra de ordem “sair do armário” passa a ecoar como sinal de exposição ao risco da violência e de um isolamento social ainda mais perverso, produzindo uma nova mobilização e exigindo cada vez mais a afirmação de uma identidade social, como estratégia política.

Para deixar isto ainda mais significativo, a aprovação pelo Superior Tribunal Federal (STF) do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo tem um peso histórico na luta do movimento social brasileiro. Esta conquista não está restrita aos homossexuais, mas aponta para pensarmos a democracia enquanto um valor fundamental no processo social. A posição do ministro Carlos Ayres Britto, que em sua defesa a favor da aprovação do projeto demonstra isto quando diz: “O sexo não pode ser usado como motivo para tornar as pessoas desiguais perante o Estado”.

Além das questões práticas envolvidas nesta decisão, ela tem um significado político e simbólico que sinaliza outro momento histórico. Se junta a esta vitória o debate muito importante sobre a separação do Estado e da religião, fortalecendo o reconhecimento de que o Estado deve ser laico, e que o mesmo não pode ficar de refém de crenças religiosas, muito menos ser pautado por elas.

[1] Uso o termo homossexual para não deixar o texto repetitivo, pois sempre que preciso me referir, teria que usar lésbicas, gueis, bissexuais ,travestis e transexuais, ou LGBTT que empobrece o texto.

.oOo.

Célio Golin é Militante do nuances – grupo pela livre expressão sexual.

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