Entrevistas
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2 de fevereiro de 2015
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10:58

“Seguiremos buscando verdade e justiça”, diz líder das Avós da Praça de Maio

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
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Estela de Carlotto, a presidenta das Avós da Praça de Maio, encontrou seu neto Ignacio Guido após uma busca de 36 anos.

Gustavo Veiga



Ela parece exausta, mas transmite a serena satisfação do dever cumprido. Como se o cansaço a tivesse invadido num só golpe depois de um enorme esforço. Estela de Carlotto, a presidenta das Avós da Praça de Maio, encontrou seu neto Ignacio Guido após uma busca de 36 anos.

O jovem nasceu em cativeiro um dia depois da partida final da Copa do Mundo de 1978. Ignacio Guido é músico e possui uma notável semelhança física com o seu pai, Oscar Montoya, o companheiro de Laura – a filha de Estela.

Guido foi entregue por um empresário a um casal de camponeses de Olavarría, na província de Buenos Aires. Seu caso gerou comoção na Argentina ao ser descoberto, em agosto do ano passado. Já se passaram quase seis meses daquele encontro e essa mulher, símbolo da resistência à ditadura civil-militar e emblema da luta por direitos humanos em todo o mundo, recebeu a reportagem do Sul21 na sede das Avós da Praça de Maio.

Nesta entrevista, Estela de Carlotto fala sobre suas lutas e sobre o que ainda precisa ser feito: faltam recuperar cerca de 300 netos. Ela também fala sobre o Papa Francisco e sobre o Brasil – que, para Estela, é motivo de agradecimento, especialmente ao ex-cardeal Evaristo Arns e ao pastor presbiteriano Jaime Wright.

“Há muita resistência, porque a história se acomodou de uma maneira tal que não houve nem uma movimentação por parte do governo”

Sul21 – Na busca da verdade sobre o que aconteceu com a sua filha Laura, a senhora viajou várias vezes da Argentina ao Brasil, quando os dois países eram governados por ditaduras. Quais são as recordações que a senhora possui daqueles anos?
Estela de Carlotto –
A primeira viagem que fiz ao exterior foi em 1980, para São Paulo. Por que? Porque o Papa vinha ao Brasil. Nós tínhamos relação com uma organização chamada Clamor, onde atuava o arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns – que ainda está vivo, é bem velhinho e nunca recebeu o devido reconhecimento que merece por tudo que fez. Na Clamor também atuava o pastor Jaime Wright e uma jornalista inglesa que vivia no Brasil, além de outros integrantes do clero e de políticos.

Sul21 – Que outros detalhes a senhora pode nos contar das reuniões no Brasil?
Estela –
Nós nos reuníamos em 1980 e em 1981 nos morros. Eram encontros propiciados pelo Clamor com jovens que estavam exilados em diferentes países. Em um desses encontros, coletamos informações sobre um campo o campo de concentração de La Cacha, em La Plata. Participavam destas reuniões refugiados do México, da Europa e do Brasil que haviam passado por esse centro clandestino de detenção. Fizemos um gráfico, a coleta de dados e constatamos a presença de mulheres grávidas. Foi então que apareceu o caso da minha filha Laura.

Estela de Carlotto: "Eu tenho viajado muito ao Brasil para falar sobre isso e para levar um pouco da experiência da Argentina, sobre como conseguimos avançar até o ponto de termos julgado os genocidas por crimes de lesa humanidade".
Estela de Carlotto: “Eu tenho viajado muito ao Brasil para falar sobre isso e para levar um pouco da experiência da Argentina, sobre como conseguimos avançar até o ponto de termos julgado os genocidas por crimes de lesa humanidade”.

Sul21 – A senhora também voltou ao Brasil várias vezes durante a democracia para falar sobre os avanços da Argentina no tema dos direitos humanos. Dilma Rousseff tem encontrado várias dificuldades para revisar o passado do Brasil.
Estela –
Eu tenho viajado muito ao Brasil para falar sobre isso e para levar um pouco da experiência da Argentina, sobre como conseguimos avançar até o ponto de termos julgado os genocidas por crimes de lesa humanidade. Também convertemos nossos campos de concentração em locais de preservação da memória. No Brasil há muito trabalho sendo feito neste sentido, mas não está tão socializado e compartilhado com a população. Eles sabem onde funcionavam os centros de detenção e não são muitos os desaparecidos no Brasil, são cerca de 400 e as famílias querem saber onde estão seus corpos e quem foram seus assassinos. Há muita resistência, porque a história se acomodou de uma maneira tal que não houve nem uma movimentação por parte do governo. Lula não fez o que esperávamos que fizesse.

“Quando existe vontade política, é possível derrubar essas leis (de anistia)

Sul21 – Uma diferença em relação à Argentina é que no Brasil segue vigente a lei de anistia.
Estela –
Mas é possível derrubar as leis. Na Argentina também havia leis de anistia, do perdão, do ponto final, além dos indultos. Quando existe vontade política, é possível derrubar essas leis. Os países latino-americanos em geral possuem contas pendentes em relação a suas ditaduras e seus desaparecidos. O Brasil, como um país aberto e generoso, tem ajudado muitíssimo às Avós da Praça de Maio.

"Ao ver Dilma chorar durante a entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade, revivi toda a emoção da entrega do relatório da Conadep".
“Ao ver Dilma chorar durante a entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade, revivi toda a emoção da entrega do relatório da Conadep”.

 Sul21 – O que senhora sentiu quando viu a presidenta Dilma chorar ao receber o relatório da Comissão da Verdade? Foi como o que ocorreu na Argentina com a entrega do relatório da Conadep, em 1984.
Estela –
Conheci a Dilma na Casa Rosada, em Buenos Aires, quando tiramos fotos e fomos à sacada com Cristina durante uma reunião entre as duas presidentas. No momento em que a vi, pude perceber a sensibilidade de uma mulher sofrida. Ela passou por uma situação espantosa com a ditadura, foi uma vítima. Ao ver Dilma chorar durante a entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade, revivi toda a emoção da entrega do relatório da Conadep. É algo muito forte para uma mulher sensível.

Sul21 – O que a senhora diria aos familiares das vítimas da ditadura no Brasil sobre a expectativa que eles possuem de encontrar seus desaparecidos?
Estela –
Nós os encorajamos a fazer o possível e a não desistir. Qualquer coisa que fizerem será também para o bem dos filhos e netos dos desaparecidos. Os familiares querem justiça já. Nós, das Avós da Praça de Maio, estamos há 37 anos nesta luta.

“Só quero lhe dar carinho e nada mais. Quero que ele saiba que esta avó o buscou durante 36 anos”

Sul21 – 2014 foi um ano muito feliz para a senhora. Entre as dezenas de entrevista que a senhora concedeu sobre o encontro com seu neto Guido, disse sempre que viu nele atitudes e gestos dos seus pais, Oscar e Laura. Quais são essas atitudes?
Estela –
Eu estou observando e conhecendo meu neto. Há seis meses ele apareceu na minha vida e nos vemos com bastante frequência. Ele vive em Olavarria, é músico, professor e está largando seus empregos formais para se dedicar à música. Agora que ele é mundialmente conhecido, está sendo bastante convocado e demandado. É um ótimo músico e compositor. Ele se parece muito com o pai, fisicamente, mas tem gestos e coisas que vêm da nossa família. Ele mesmo disse em uma entrevista: “Tenho a música do meu pai e a dialética da minha mãe”.

Sul21 – Como era a sua filha Laura, a mãe de Guido?
Estela –
A Laura tinha 23 anos quando foi assassinada. Era uma militante, tinha garra, convicção, mas não era uma oradora ou uma erudita, não dava discursos fantásticos. Mas o Guido tem a forma de se expressar dela. Tanto é assim que, no dia em que deu uma coletiva à toda a imprensa, pediu que depois não o perturbassem mais. Isso me deu um calafrio. Ele respondeu às perguntas de uma forma claríssima. Guido traz isso de sua mãe. O pai dele era músico e seu avô paterno também. Eu também tenho músicos na família. Meus netos, familiares e um de meus filhos, então ele também herdou isso da nossa família. São coisas genéticas irreversíveis, porque, veja bem, ele foi criado por dois peões no meio do campo. De onde veio essa vontade de estudar e seguir na música? Dos pais adotivos que não foi.

Sul21 – Como foi o início do relacionamento com seu neto?
Estela –
Eu sou muito prudente, não quero impor nada a ele, nem dizer nada que ele não queria saber. Só quero lhe dar carinho e nada mais. Quero que ele saiba que esta avó o buscou durante 36 anos. Eu sabia que Laura havia perdido dois filhos, mas sempre o busquei.

“Sou uma mulher que não guarda rancor, não tenho ódio de nada”

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“Quando eu ia ao exterior, me davam essas camisetas de presente e eu guardava para meu neto para dizer a ele, no dia em que o encontrasse, que sua avó rodou o mundo tentando buscá-lo.”

Sul21 – Ao longo de sua busca, a senhora foi guardando as camisetas que lhe davam em diferentes lugares sobre a luta por direitos humanos. A senhora sempre disse que a intenção era dar essas camisetas ao seu neto quando o encontrasse.
Estela –
Eu gostaria que ele soubesse por onde sua avó o andou buscando. Levei para ele todas as camisetas no dia 31 de dezembro, em uma maleta cheia e ele já começou a experimenta-las. Ele gostou mais de algumas do que de outras. Muitas são da Argentina e muitas são de organizações políticas, sociais, sindicais e de eventos realizados no exterior. Quando eu ia ao exterior, me davam essas camisetas de presente e eu guardava para meu neto para dizer a ele, no dia em que o encontrasse, que sua avó rodou o mundo tentando buscá-lo. Tenho também uma caixa com chaveiros, canetas e outros presentes que vou levar para ele.

Sul21 – O que a senhora sente quando percebe que é tida como uma referência na luta pelos direitos humanos a nível internacional?
Estela –
Às vezes tenho um pouco de receio dessa exaltação pessoal e acabo pedindo que não me idealizem tanto, porque sou uma mulher comum que está fazendo o que faz por amor a sua filha e ao seu neto. Eu soube acomodar a minha vida. Eu sou assim, não sou uma pessoa passiva, tranquila. Sempre, desde pequena, fui uma pessoa de liderança. Uma liderança normal, comunitária, de bairro e escolar. Eu era diretora de escola e matriarca de uma família com quatro filhos. É preciso de liderança para isso.

Sul21 – Como tem sido a história de luta das Avós da Praça de Maio nestes anos todos?
Estela –
Era preciso ter criatividade e por em prática coisas normais para obter respostas e dar visibilidade à luta. Eu fiz o que sempre soube fazer, ser professora me ajudou muito para isso. Não tenho nenhum problema em falar e subir em um púlpito. Não tenho temores ou vergonha, subo tranquilamente e essa visibilidade me ajudou muito a difundir meu espírito de paz. Porque sou uma mulher que não guarda rancor, não sou violenta nem tenho ódio de nada. Simplesmente nossa luta tem sido implacável, mas com códigos morais muito sérios. As demais companheiras são iguais a mim.

“A Igreja foi cúmplice da ditadura por erro, omissão ou o que seja, salvo sete bispos que foram solidários aos perseguidos”

Sul21 – O reconhecimento internacional à organização deve encher a senhora de orgulho.
Estela –
Me agrada, porque há um reconhecimento afetivo muito grande às Avós. Houve uma explosão muito especial de reconhecimento quando encontrei meu neto Guido. Ainda hoje, se me encontro com as pessoas na rua, me dizem: “Me deixa te dar um abraço”, e em seguida começam a chorar. Ficou marcado na sociedade um ato de justiça de uma mulher argentina que lutou. Ainda que eu diga sempre que não luto sozinha, que luto com minhas companheiras, sou eu que estou na linha de frente, que apareço mais. Isso me dá um pouco de vergonha, não me agrada muito.

Sul21 – É preciso ter modéstia diante de tantos elogios ou de uma certa idealização, mas como a senhora se considera, enquanto presidenta das Avós da Praça de Maio?
Estela –
Minha conduta é natural, não finjo nem faço discursos para que gostem de mim. Se você me perguntar antes de eu ir a um evento o que vou dizer, não poderia te responder. Primeiro, eu observo as pessoas presentes e digo a mim mesma onde estou e o que esperam de mim. Falo sobre o Guido, sobre a união, sobre coisas boas, mas faço isso de coração. Não gosto de ler discursos. O marido de uma amiga já me disse: “Estela, eu sempre gosto de ouvir você falar, porque nunca dizes a mesma coisa”. Ou seja, não tenho um discurso pronto para tudo.

Sul21 – Na publicação oficial das Avós, agora aparece que a Igreja argentina está contribuindo para a busca dos netos que faltam. Esse gesto era impensado em outra época, não?
Estela –
Sim. Se havia um lugar onde nós íamos buscar informações – totalmente ignorantes do que acontecia – era a Igreja. Somos católicas e no passado também éramos. A Igreja foi cúmplice da ditadura por erro, omissão ou o que seja, salvo sete bispos que foram solidários aos perseguidos. Tivemos reuniões com o Papa em plena ditadura. Fomos ao Brasil para relatar isso a ele nos anos 1980. Em 1998, quando o Papa Wojtyla nos recebeu, houve uma mão negra que nos tinha apagado da lista de reuniões. Se não fosse pelos bispos Casaretoo, Laguna e Arancedo, que estavam lá, o Papa não teria nos recebido.

“Somos poucas e estamos no último suspiro de nossas vidas”

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“Nossa vida é limitada, somos poucas e estamos no último suspiro de nossas vidas. Lideramos a organização e, enquanto existir uma avó, ela liderará essa organização.”

 Sul21 – Qual sua opinião sobre o Papa Francisco?
Estela –
Eu opinei mal. No início, quando ficamos sabendo de sua eleição, dissemos: “Nossa, vejam só! Esse que nunca falou por nós”. Depois fui me tomando conhecimento, através de pessoas sensatas, que ele fez muito em silêncio durante a ditadura e, por isso, começamos a ver agora seu comportamento como Papa: o uso dos mesmos sapatos todos os dias, o crucifixo sem nada de ouro, o anel de latão e as medias que ele tem tomado em temas fortes, quase impossíveis. O Papa Francisco nos recebeu em abril de 2013 no Vaticano. Era para ser uma reunião geral, mas ele veio até nós para conversar. Ele é uma revelação.

Sul21 – Como a senhora imagina que ficará a organização Avós da Praça de Maio depois que as avós já não estejam mais presentes?
Estela –
Ainda falta encontrar 300 netos. Nossa vida é limitada, somos poucas e estamos no último suspiro de nossas vidas. Lideramos a organização e, enquanto existir uma avó, ela liderará essa organização. O dia em que não estejamos mais presentes, já teremos deixado o suficiente. Netos e familiares também estão incorporados à comissão diretora da instituição. Eu tenho filhos, netos e seguramente a organização vai seguir ativa e buscando os que ainda faltam. Também seguiremos buscando a verdade e a justiça, que ainda não está completa. Então, tudo o que falta fazer será feito por quem nos suceder. Isso já está previsto.


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