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23 de julho de 2015
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12:29

De Recife a Porto Alegre: mesa redonda debate como o ativismo urbano pode salvar as cidades

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Debate sobre o ativismo urbano e movimentos de Ocupe lotou sala do Instituto Brasileiro de Arquitetura, na capital | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Debate sobre o ativismo urbano e movimentos de Ocupe lotou sala do Instituto de Arquitetos do Brasil, na capital | Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Fernanda Canofre 

“Eu escrevo sobre o direito à cidade, vocês o praticam. E essa é a coisa mais importante”. Assim o geógrafo David Harvey sintetizou o movimento #OcupeEstelita, em Recife, durante uma fala pública no Cais José Estelita em novembro do ano passado. A visita de Harvey foi organizada junto a uma série de atividades de ocupação do espaço que estava prestes a se tornar um empreendimento comercial com 12 torres até dois anos atrás. Com o movimento da população que ocupou o espaço seu por direito, a prefeitura e a construtora tiveram de frear suas atividades. E Estelita virou exemplo de resistência.

Nesta quarta-feira (22), uma das integrantes do #OcupeEstelita, a professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutora em Direito Público, Liana Cirne Lins, esteve no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), em Porto Alegre, para dividir suas experiências com o movimento. Do outro lado da mesa, o sociólogo João Volino, a filósofa Nazareth Agra Hassen e a integrante do Minha Porto Alegre, Carolina Soares, falaram sobre o Ocupe daqui, que resiste para manter o espaço do Cais Mauá público. Numa ponte entre Recife e Porto Alegre, o debate sobre a “participação pé-na-porta”, como definiu a mediadora Kátia Suman, tentou responder: o que o ativismo urbano pode fazer para que as cidades sejam das pessoas?

Em Porto Alegre, onde a decisão sobre a revitalização da orla do Guaíba e do destino de espaços públicos é realizada a portas fechadas, as redes sociais se tornaram o canal através do qual ativistas e cidadãos levantam o debate ignorado pelo poder público. “São esses movimentos que estão fazendo o chamamento da população”, afirmou o sociólogo João Volino, integrante do Cais Mauá para Todos. “Desde 2013, ninguém entra no Cais Mauá. A proibição de eventos dentro do Cais é porque entenderam que, se abrissem, não recuperariam mais”.

“A cidade não é para todos”

Liana Cirne Lins, uma das líderes do Ocupe Estelita, dividiu experiências do movimento | Foto: Guilherme Santos/Sul21 Liana Cirne Lins, uma das líderes do Ocupe Estelita, dividiu experiências do movimento | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Liana Cirne Lins, uma das líderes do Ocupe Estelita, dividiu experiências do movimento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Liana Cirne Lins vive há 14 anos em Recife. Se mudou para lá para fazer o mestrado e não mais voltou ao Rio Grande do Sul. Mas assim como se apaixonou pela cidade, aprendeu a encontrar nela as rachaduras cotidianas. “Hoje caminhei de mãos dadas com meu filho por Porto Alegre. Em Recife, onde as calçadas tem um metro e meio de largura, não posso fazer isso. Lá é só fila indiana”, contou durante o encontro, demonstrando um exemplo de como a estrutura da cidade pode ditar a maneira de nos relacionarmos.

Quando a prefeitura de Recife decidiu seguir com um investimento privado de R$ 55 milhões, que ocuparia a área de 10 campos de futebol e redesenharia toda a paisagem do porto da capital pernambucana com a implantação de 12 torres no Cais José Estelita, Liana descobriu na luta pelo espaço público sua paixão. “A ideia nos agredia”, lembrou.

Professora do mestrado de Direitos Humanos na UFPE, ela esteve também envolvida no movimento que conclamou posse pública para a Praça Diário – um dos pontos turísticos mais conhecidos de Recife. A área havia sido cercada com tapumes marcando território dos camarotes de carnaval da Rede Globo. Levou um ano e nove meses, mas Liana conta que, depois das manifestações e shows organizados pelo movimento popular, a emissora decidiu se retirar e liberar a praça outra vez. Com o Cais Estelita não foi tão simples.

Para Liana, o Ocupe Estelita colocou o poder popular enfrentando frente a frente o poder econômico, “travestido de um poder legítimo, que é o poder político”. Se de um lado da discussão estavam cidadãos, voluntários de um movimento, do outro empresários sentavam junto ao executivo municipal. A diferença é que o Ocupe Estelita soube criar uma política subversiva usando a cultura como instrumento de luta, “com teatro, poesia, música, paquera”. Artistas como Criolo, China, Otto, além de fazerem shows no local, escreveram hinos de resistência ao Cais. Uma charge de Laerte levou a hashtag para fora de Pernambuco. E a nova geração de cineastas, que se tornou referência no cenário nacional, se encarregou de vídeos para espalhar a campanha. Um deles, chamado “Novo Apocalipse Recife”, dirigido pelo coletivo do OE, alcançou 100 mil visualizações em apenas dois dias.

O Ocupe Estelita também serviu como laboratório social para entender a cidade do Recife. Foi assim que Liana descobriu que o feminismo deveria caminhar pela mesma trilha do direito à cidade. “Mulheres arriscam sua dignidade sexual e sua integridade física cada vez que saem às ruas. A cidade é um espaço de reprodução do machismo, e nós não tínhamos notado isso. A cidade é um espaço de reprodução do racismo. A cidade não é para todos. A luta pelo direito à cidade nos ensinou isso”.

Além disso, uma questão que diferenciou o Estelita de outros movimentos foi a exigência em manter o “domínio técnico” das questões do processo. O conhecimento das vias jurídicas, por exemplo, foi essencial para conseguir a liminar que suspendeu a reunião onde a prefeitura assinaria a aprovação do projeto no ano passado. Com o governo municipal de portas fechadas, o Ocupe Estelita encontrou uma maneira de chegar ao governo federal para barrar a construção: apresentaram ao Ministério da Cultura pedido de tombamento da paisagem. A Declaração de Significância foi elaborada por uma comissão de voluntários do grupo e aguarda agora a avaliação do MinC.

Segundo Liana, como as duas torres previstas para serem erguidas no empreendimento apresentado para o Cais Mauá, como uma “cortina a esconder o pôr-do-sol do Guaíba, Porto Alegre poderia tomar o mesmo rumo. “O Ocupe Estelita está mostrando que a gente pode colocar no bolso um empreendimento bilionário. Nós, um bando de ‘vagabundos desocupados’”, concluiu a professora, lembrando a forma como é comum se referirem a quem faz parte do movimento.

Quando Porto Alegre abraçou o Guaíba

Porto Alegre coleciona histórias sobre mobilizações populares em defesa do espaço público. Em 1970, o Mercado Público quase foi colocado abaixo para que o centro da cidade fosse “modernizado”. Quatro anos depois, a Usina do Gasômetro correu o mesmo risco. Houve um tempo em que o terreno onde hoje é o Parque Moinhos de Vento, o Parcão, poderia ter se transformado em um lote com 40 edifícios de 20 andares. Em 1988, o Parque da Marinha quase ficou debaixo de duas torres com o projeto chamado de “Praia do Guaíba”. Em todos os casos, movimentos populares reverteram a decisão dos governos.

No caso da Praia do Guaíba, uma corrente desde o Parque da Marinha, seguindo por toda a Avenida Beira-Rio, até o Cais do porto, foi formada para abraçar o rio cartão-postal da capital. Uma reportagem de televisão da época dizia que era “a maior manifestação ecológica já realizada em Porto Alegre”. No evento do Instituto de Arquitetura, 27 anos depois, pessoas do público lembraram dessa época. Um homem disse que acompanhou a mãe e que eles ficaram sabendo do “abraço ao Guaíba” por vizinhos e amigos. Sem redes sociais, com pouco apoio da imprensa, a propaganda foi toda feita no boca a boca. E funcionou.

Os casos foram lembrados pela filósofa Nazareth Agra Hassen, que já participou da Massa Crítica e de outras iniciativas como a “Vaga Viva” – onde pessoas ocupam vagas de estacionamento de carros – e Jardim Bicicletária – um grupo de ciclistas sai plantando mudas em diversos espaços da cidade sem verde. Para ela, o caso do abraço ao Guaíba fez parte de uma época na qual havia muita energia nas ruas em Porto Alegre. Porém, com o surgimento do Orçamento Participativo, em 1989, essa energia popular acabou canalizada dentro de um espaço oficial.

Apesar de ressaltar os avanços democráticos representados pelo OP, Nazareth fez uma ressalva. “É ótimo ouvir as pessoas, mas se as pessoas não são informadas, ouvi-las não vai mudar muito. Elas estão informadas pelo mainstream. E o que isso passa a elas? Já ouvi muita gente comentando por aí que o Cais Mauá vai virar Puerto Madero”, disse, se referindo ao bairro de Buenos Aires transformado em zona nobre e de negócios com torres comerciais e hotéis.

João Volino, que além de integrar o movimento em defesa do Cais Mauá também é presidente da Associação de Moradores do Bairro Auxiliadora, defendeu que o envolvimento com o que acontece na própria rua é tão importante quanto o de defesa de grandes espaços públicos. Volino lembrou de como, há três meses, seu bairro ganhou um espaço público de interação com a criação da Passagem dos Lanceiros Negros.

Segundo ele, há oito anos, um jornal do bairro publicado pelo grupo RBS circulou no Auxiliadora com uma nota referente a um terreno da prefeitura desocupado e uma citação de um funcionário da EPTC afirmando que os moradores gostariam de ver a abertura de uma rua ali. Sem nunca terem sido consultados a respeito, um grupo de moradores se organizou e passou a bater de porta em porta para descobrir quem apoiava o projeto. Não encontraram ninguém. Oito anos depois, os moradores do Auxiliadora transformaram o terreno vazio em espaço de feiras, festas juninas e outros eventos.

João Volino lembrou do processo para criação da Passagem dos Lanceiros Negros, no bairro Auxiliadora | Foto: Guilherme Santos/Sul21
João Volino lembrou do processo para criação da Passagem dos Lanceiros Negros, no bairro Auxiliadora | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Resistir é revolucionário”

Durante a mesa, a psicopedagoga Carolina Soares ainda apresentou o projeto “Minha Porto Alegre”. Criado a partir da iniciativa do Rio de Janeiro que venceu o Prêmio de Inovação do Google em 2014, a versão sobre a capital gaúcha estará disponível na internet a partir de setembro deste ano. O projeto oferece desde petições online diretas – se um abaixo-assinado reúne 15 mil assinaturas, 15 mil emails são automaticamente gerados ao destinatário – à chance de ajudar a escrever, editar ou criar uma Proposta de Lei. No Rio, o “Meu Rio” conseguiu salvar uma escola tradicional da cidade que iria ser fechada, instalar banheiros para homens e mulheres nas praias e criar uma Delegacia de Desaparecidos.

“Porto Alegre já foi referência entre capitais com melhor qualidade de vida, hoje está em 9º lugar. Nós acreditamos que, se os problemas estão nas cidades, a solução está nas pessoas. Isso parte de uma visão de cidade inclusiva, ativa e sustentável”, explicou Carolina.

Depois de três anos, 46 empresas envolvidas e 2.500 páginas, o Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto do Meio-Ambiente (EIA-RIMA) sobre as obras no Cais Mauá foi disponibilizado para download no site da Viva Cais Mauá. O objetivo é que o estudo possa ajudar a ampliar o debate e reconhecer os efeitos da obra para a paisagem local.

A próxima atividade do Cais Mauá Para Todos já está marcada para o dia 1º de agosto. A ideia é ocupar a Praça Brigadeiro Sampaio com um arraial durante a tarde, chamando a atenção para o local que a prefeitura pretende retirar para abrir uma nova pista para carros e um estacionamento.

“Lá no Ocupe a gente costuma dizer: resistir é revolucionário”, lembrou Liana Cirne Lins. E Porto Alegre resiste.

Público lotou uma das salas do Instituto Brasileiro de Arquitetura | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Público lotou uma das salas do Instituto de Arquitetos do Brasil | Foto: Guilherme Santos/Sul21

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