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6 de outubro de 2016
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17:23

Obrigados a atualizar Cadastro Único, usuários do Bolsa Família passam a madrugada em fila na Fasc

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC | Foto: Maia Rubim/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Uma longa fila diante da sede da Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (Fasc), na Av. Ipiranga, começa a se formar ainda durante a madrugada. Ao longo das horas seguintes, muitas pessoas continuam chegando, a maioria delas beneficiárias do Bolsa Família convocadas para atualizar o Cadastro Único, instrumento que identifica as famílias de baixa renda aptas a participar de programas do governo federal. Mas nem todas serão atendidas. Esta cena vem se repetindo pelo menos desde meados da última semana.

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Nesta quinta-feira (6), a partir das 8h, foram distribuídas apenas 100 fichas – 70 para o público em geral e 30 para o atendimento prioritário. Após a distribuição de todas as fichas, ao menos 15 pessoas ficaram do lado de fora da Fasc sem a previsão de atendimento. Por cerca de meia hora, um grupo de mulheres ainda tentou aguardar para ver se fichas prioritárias seriam distribuídas, mas não obtiveram sucesso. Algumas delas, que já tinham tentado em outros dias, disseram que teriam que voltar de madrugada.

Hoje, o primeiro a chegar na fila foi Luís Carlos Cardoso, que precisava fazer a matrícula de sua filha em uma creche da Vila Cruzeiro. Para conseguir uma ficha, chegou ao local por volta da 1h30 da madrugada. Na quarta, tinha chegado por volta das 9h30, mas as fichas haviam se esgotado.

Paciente de câncer e de diabetes, Rosana Lucas Giurno também madrugou na fila para conseguir uma ficha de atendimento prioritário. Chegou por volta das 2h acompanhado do filho de quatro anos. Já tinha tentado ontem sem sucesso. Seu objetivo era renovar o Cadastro Único para continuar recebendo o benefício do Bolsa Família no valor de R$ 172, que emprega para comprar apenas uma parte de seus remédios, que chegam a custar até R$ 200 cada.

06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
Paciente de câncer e diabetes, Rosana chegou no início da madrugada à fila diante da Fasc | Foto: Maia Rubim/Sul21

Moradora da Restinga, ela diz que precisou pegar o último ônibus noturno para garantir que conseguiria ser atendida hoje. Ao lado de uma cunhada que a acompanhou devido ao risco de passar mal durante a madrugada, esperou na chuva, alternando momentos em pé e sentada em uma cadeira e enrolada no cobertor. “É ruim. Tu não faz ideia, mas a gente precisa. Temos que estar aqui”, afirma.

Por outro lado, Adriana Machado é uma das pessoas que não teve a mesma sorte. Apesar de ter entrado na fila às 7h, não conseguiu a ficha. Segundo ela, é a segunda vez que não tem sucesso. Seu sentimento era de indignação. “As pessoas vêm dormir aqui, chegam cedo e não são atendidas. Eles tratam as pessoas que nem bicho”, disse.

De acordo com Ângela Maria de Aguiar da Silva, representante do Fórum Municipal dos Trabalhadores da Assistência Social (Fomtas) no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), o problema que resultou na falta de condições de atendimento nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e nas longas filas na sede da Fasc foi a não implementação de um projeto elaborado com o apoio do conselho para a contratação de entrevistadores sociais.

A partir do projeto, foi realizada em 2015 uma licitação para a contratação, pela Fasc, de uma empresa para contratar entrevistadores a serem qualificados para a realização da atualização e  de novos cadastros. A empresa deveria operar por um prazo de dois anos, com a possibilidade de renovação por outros dois. No entanto, alegando problemas jurídicos, a Fasc não homologou o edital e a empresa, que deveria começar a prestar o serviço em janeiro, entrou com uma ação na Justiça questionando a decisão, da qual a fundação recorreu e ainda não há uma definição judicial.

Ângela explica que, como não houve a homologação do projeto, os trabalhadores do CRAS “disseram que não iriam mais realizar a função sem recursos humanos e sem condições”. “Foi uma decisão da direção da Fasc fazer o atendimento na sede”, afirma.

Segundo ela, o CMAS fez reuniões com o presidente da Fasc, Marcelo Soares, em que ele assumiu o compromisso de buscar uma solução e oferecer um cartão para o deslocamento das famílias até a fundação, o que não estaria ocorrendo.

06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
Fichas são distribuídas apenas às 8h | Foto: Maia Rubim/Sul21

A origem do problema

No dia 17 de agosto, servidores da Fasc que trabalham nos CRAS anunciaram a decisão de suspender a partir do dia seguinte o atendimento relativo ao cadastro único. O motivo da suspensão é a falta de pessoal para atender a demanda atual nos 22 CRAS instalados na cidade. Os Centros de Referência são responsáveis, entre outras tarefas, pela atualização cadastral dos beneficiários e averiguação de eventuais irregularidades nos mesmos. Os cadastros possuem validade de dois anos, a contar da data da última entrevista, e a atualização dos mesmos é responsabilidade da Prefeitura e dos cidadãos cadastrados. A não atualização implica na perda do benefício.

Na ocasião, os servidores alegaram que a suspensão dos serviços do Cadastro Único era o resultado do esgotamento de um modelo de atendimento baseado em estagiários. Segundo eles, a anulação de um edital para a contratação de uma empresa capacitada a atender os usuários e a redução do número de estagiários provocou uma sobrecarga de trabalho para os servidores e o aumento da demora no atendimento.

No mesmo dia, o presidente da Fasc anunciou um plano emergencial para atender a população que integra o Cadastro Único, a partir do dia 22 de agosto, na sede da fundação (Avenida Ipiranga, 310), de segunda à sexta-feira, das 8h30 às 12h e das 13h30 às 17h. Na ocasião, a fundação argumentou que “a medida visava garantir o atendimento à população durante o processo de qualificação do serviço para adequação à nova metodologia a ser empregada, fortalecendo e priorizando a territorialização”.

A fundação apontava ainda que 600 pessoas eram atendidas por dia nos CRAS. Atualmente, no entanto, apenas cerca de 100 pessoas estão conseguindo atendimento diário.

Moradora da Vila Jardim, Adriana Machado afirma que gostaria que o atendimento voltasse a ser realizado nos CRAS. “Lá era tranquilo. Podia ir de manhã ou de tarde, não tinha problema”, afirmou. Ao lado dela, outras mulheres afirmavam que se o atendimento estivesse ocorrendo nos centros de referência não precisariam ter pedido dispensa no trabalho para tentar, e não conseguir, retirar uma ficha.

Lúcia Helena de Souza, coordenadora técnica do Cadastro Único, explica que o problema se agravou quando a Fasc deixou de contar com os estagiários que realizavam a atualização do cadastro, o que ocorreu em razão de uma ação do Ministério Público do Trabalho do RS que exigia que a Prefeitura realizasse processo seletivo público com critérios objetivos definidos previamente em edital. A Justiça condenou em 24 de setembro a Prefeitura e exigiu que fosse cumprida a determinação tanto para renovações de contratos atuais como para a admissão de novos estagiários.

“Então, a gente nem tinha os entrevistadores, nem os estagiários habituais. Isso causou um vazio de recursos humanos que foi se agravando e os locais de atendimento se viram impossibilitados de manter o trabalho nos CRAS, que entregaram o atendimento para a sede administrativa da fundação”, afirma.

06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
Nem todo mundo que espera na fila consegue ser atendido | Foto: Maia Rubim/Sul21

Com a falta de pessoal e de entrevistadores, o atendimento está sendo realizado pelos servidores que fazem a coordenação do cadastro na cidade. Inicialmente, isso ocorreria de forma emergencial apenas até o final de setembro, mas o problema persiste. Como não há recursos humanos suficientes para atender a demanda, os servidores decidiram limitar o atendimento a 100 pessoas mediante a entrega de fichas, o que acaba gerando tumultos e brigas entre as pessoas que não conseguem pegar uma senha.

Segundo Lúcia, o problema da demanda é agravado porque algumas pessoas acabam sendo encaminhadas para a sede da Fasc para realizar outras ações, como matrícula em escolas, mas apenas quem precisa atualizar o Cadastro Único deveria se dirigir à sede da Fundação.

Cerca de 110 mil famílias integram o Cadastro Único hoje em Porto Alegre. Desse total, cerca de 53 mil famílias são beneficiárias do Programa Bolsa Família. A grande procura por atendimento ocorre, principalmente, por uma decisão do governo federal, tomada depois que Michel Temer assumiu a presidência, de realizar uma varredura no cadastro para averiguar a presença de fraudes em programas sociais, seja por omissão de renda ou não declaração de óbito, por exemplo. O problema é que cerca de 12 mil famílias receberam cartas exigindo a realização da atualização cadastral até o dia 21 de outubro.

“As pessoas estão no limite, estão se agredindo. Os trabalhadores estão no limite, adoecendo, por uma irresponsabilidade, uma inconsequência. Isso aqui estava evidente que não ia dar certo. Se nas regiões já tinha falhas, imagina tu centralizar isso”, afirma Ângela, do CMAS.

06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
Guarda Municipal esteve no local para fazer um levantamento e dar sugestão para resolver os problemas no atendimento | Foto: Maia Rubim/Sul21

Indignação acaba em tumulto

Chefe operacional da Guarda Municipal, Franklin dos Santos compareceu ao local no início da manhã após a instituição receber, nos últimos dias, relatos sobre a ocorrência de tumultos após pessoas ficarem indignadas por não conseguirem atendimento. “Diariamente, a gente tem atendido algumas situações de princípio de desordem, principalmente no início do atendimento”, diz.

No entanto, além de fazer a segurança do local, Franklin esteve presente para fazer um levantamento a ser entregue para a Secretaria de Segurança com sugestões para qualificar o atendimento ao público. Segundo ele, entre outras sugestões, seria possível fazer mudanças como a disponibilização de uma linha telefônica para o agendamento do atendimento e também abrir as portas do prédio para que o público não seja obrigado a esperar do lado de fora, debaixo de chuva ou correndo risco de assaltos durante a madrugada – há uma espécie de sala de espera para o público, mas esta só é aberta às 8h.

“Vamos levar para as instâncias superiores para tentar achar uma alternativa para essas pessoas que passam a madrugada inteira esperando atendimento”, pontua Franklin.

Procurada, a direção da Fasc respondeu por e-mail que o atendimento seguirá sendo realizado por estagiários supervisionados pela equipe técnica da Coordenação da Gestão de Benefícios e Cadastro Único até o final de outubro. Além disso, diz que está em fase final a licitação para a contratação de 40 entrevistadores sociais que serão capacitados para a retomada do atendimento nos CRAS. Até o fechamento da matéria, porém, o órgão não havia respondido o que poderá ocorrer com quem não conseguir atualizar o cadastro dentro do prazo dado pelo governo federal.

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Foto: Maia Rubim/Sul21
06/10/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Usuários esperam por distribuição de senhas para atendimento na FASC. Foto: Maia Rubim/Sul21
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