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5 de julho de 2017
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10:59

Ameaçadas de despejo, ocupações Saraí e Boa Esperança cobram soluções do Estado e da UFRGS

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Audiência pública da Cuthab debateu situação das ocupações Saraí e Boa Esperança | Foto: Henrique Ferreira Bregão/CMPA

Luís Eduardo Gomes

“Olhem bem para aquelas crianças. Onde elas vão morar?”, questionou Sílvia Regina Pereira Silveira durante audiência pública na Câmara de Vereadoras sobre os processos de reintegração de posse movidos contra as ocupações Vila Boa Esperança e Saraí. Sílvia é moradora da última há quatro anos. Antes, morava junto com o marido e quatro filhos no bairro Rubem Berta, onde pagava R$ 600 de aluguel por um imóvel com um quarto, banheiro e cozinha. “Começou a subir demais o meu aluguel. Comecei a trabalhar de vendedora ambulante no Centro e um rapaz me disse que tinha um prédio que tinha sido ocupado e que era para eu assistir uma reunião e expor minha situação para a coordenação do prédio. Expus que às vezes eu tinha dinheiro para pagar o aluguel e às vezes eu não tinha o que comer, mas o aluguel sempre paguei”, conta. Uma semana depois, estava morando na ocupação, localizada em um prédio privado abandonado na esquina da rua Caldas Júnior com a Av. Mauá, no Centro de Porto Alegre.

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Erondina Sarturi conta que mora, com as duas filhas, há cerca de 25 anos na Boa Esperança, localizada às margens da Av. Bento Gonçalves, perto de Viamão, em um terreno pertencendo à UFRGS. No entanto, diz que a comunidade está lá há cerca de 60 anos, décadas antes de a universidade receber a posse do terreno. “A UFRGS passou a ser dona da área em 1984, quando já tinha moradores ali. Ela [a UFRGS] ganhou uma casa ocupada e ela deveria ter ido procurar os moradores, há quanto tempo estavam lá, mas não fez. No final do ano passado, fomos pegos de surpresa por essa reintegração de posse assinada por um juiz”, diz.

A audiência pública da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação (Cuthab) da Câmara foi convocada pela vereadora Fernanda Melchionna a pedido do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), que alerta para a possibilidade de as duas comunidades, que abrigam dezenas de famílias, serem alvo de ações de reintegração de posse em breve. Para a vereadora, as ocupações estão enquadradas dentro de um contexto maior de organização popular para enfrentar a ausência de políticas habitacionais que respondam ao déficit de moradia, que atingiria cerca de 50 mil pessoas na Capital. “Inclusive bairros grandes, como o Rubem Berta e o Santa Rosa, nasceram como ocupações urbanas que depois se regularizaram. O processo de ocupação urbana é um processo de resistência, de luta e de defesa de direitos sociais”, diz a vereadora.

Ocupação Saraí, no Centro de Porto Alegre | Foto: Juliano Antunes/Sul21

Ocupação Saraí

Construído para servir de moradia popular, com financiamento do Banco Nacional de Habitação – extinta empresa estatal brasileira que financiava empreendimentos imobiliários – o prédio que hoje abriga da ocupação Saraí nunca cumpriu seu destino. Depois de ser usado para escritórios da Caixa Econômica Federal, ficou abandonado por quase duas décadas sem propósito.

Essa é a quarta vez que o MNLM ocupa o imóvel, depois de 2005, 2006, 2011 e 2013. O prédio pertencia à Caixa Econômica Federal durante a primeira ocupação e foi vendido à iniciativa privada, passando a ser propriedade da Risa Administração. Foi revendido ao crime organizado em 2006, quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) cavou um túnel no imóvel para tentar assaltar o Banrisul. Quando voltou para as mãos do proprietário, foi ocupado novamente, situação em que os ocupante sofreram uma operação de despejo.

A última ocupação obteve uma grande vitória em 2014, quando o então governador Tarso Genro assinou um decreto autorizando a desapropriação do prédio, o que envolveria uma indenização a ser paga pelo Estado. Com a troca de governo, o processo foi interrompido. A gestão de José Ivo Sartori (PMDB) não deu prosseguimento e alega não ter dinheiro para pagar o valor de R$ 4,8 milhões pedido pelo antigo proprietário, que voltou a entrar na Justiça pedindo a reintegração de posse.

“É um prédio que acabou servindo para o crime organizado, para o PCC cavar um túnel até o Banrisul. Foram pegos na tampa pelos serviços de inteligência, mas vocês veem a gravidade da situação. Depois ficou anos abandonado e o movimento deu vida”, diz a vereadora Melchionna.

Audiência pública foi conduzida pela vereadora Fernanda Melchionna | Foto: Henrique Ferreira Bregão/CMPA

Sílvia diz que o túnel criado pelo PCC ainda está visível. Por outro lado, diz que agora só há famílias trabalhadoras no prédio. “Não tem vagabundagem lá dentro, não tem drogas, não tem cachaçada, não tem nada”, relata, acrescentando que as famílias se dividem em tarefas como a limpeza e, com auxílio de apoiadores externos, realizar atividades como aulas de dança e reforço escolar. A proximidade da escola, aliás, é um dos benefícios apontados por Sílvia para morar na Saraí. Seus filhos menores de idade, incluindo uma autista que também tem problemas de visão – enxerga apenas com um olho – estudam na escola estadual Rio de Janeiro, localizada na Rua General Lima e Silva. Ela conta que os levou para acompanhar a reintegração de posse na ocupação Lanceiros Negros, também no Centro, no último dia 14 de junho, para que entendessem que aquilo poderia acontecer com eles. “Todos nós sabemos que de graça ninguém mora. Tem que pagar água, luz e onde tu mora, e a gente quer pagar. Só que a gente quer uma solução para saber o que vamos fazer. A gente não quer sair de lá tomando paulada. A gente não quer sair de lá com gás no rosto, tiro de borracha. As minhas filhas assistiram tudo”, diz.

Luciane Schneider, do Núcleo de Moradia da Defensoria Pública do Estado, salienta que o decreto estadual ainda está vigente, mas que é preciso vontade política para resolver a situação. “Essa questão dos vazios urbanos do Centro, dos prédios que não cumprem sua função social e poderiam ser utilizados para fins de moradia é uma questão que a gente defende que tem que ser trazida para a pauta do governo municipal, do governo estadual, para ver o que é possível fazer com esses vazios urbanos e onde há viabilidade de moradia. Esse prédio da Saraí é um exemplo, as famílias estão organizadas e já moram ali há bastante tempo. Já existiu um encaminhamento por parte do governo”, diz.

O processo atualmente está sendo mediado pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), onde o poder judiciário, o Ministério Público e a Defensoria tentam negociar com o proprietário uma solução para o impasse e auxiliar na captação de recursos. Segundo ela, uma alternativa para a compra do imóvel seria a captação de recursos via Minha Casa Minha Vida – Entidades.

Coordenadora do MNLM, Ceniriani Vargas da Silva salienta que o movimento já apresentou, há cerca de dois anos, três propostas elaboradas por um grupo técnico, composto por arquitetos e engenheiros, com estudo de viabilidade do prédio, com previsão de reforma e de utilização de recursos do Minha Casa Minha Vida – Entidades para confirmar a desapropriação do imóvel e consequente cessão dele para uma cooperativa habitacional integrada pelas famílias. No entanto, não houve retorno do Estado.

Apesar de convidado, o governo não enviou representantes para participar da audiência pública. Por parte da Prefeitura, estiveram presentes representantes da Procuradoria Geral do Município (PGM) e do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), que afirmaram que Porto Alegre cumpriu sua parte no acordo firmado em 2014 e que a questão agora estava nas mãos do governo do Estado. No entanto, Ezequiel Morais, do MNLM, cobrou os representantes da Prefeitura pela falta de apoio político para a resolução da questão. “Nós sempre conseguimos dialogar com o município, nunca foi um problema. A gente tem visto agora que não estamos conseguindo conversar, esse é o problema”, afirmou, ressaltando que o movimento está disposto a encontrar uma solução através da cooperativa, mas que precisa da participação do governo municipal no processo. “Se os nossos filhos forem pra rua, a gente vai acampar na frente da prefeitura”, disse.

Como encaminhamento sobre a questão, a Cuthab irá solicitar uma reunião com a Secretaria Estadual de Habitação, dirigida atualmente por Fabiano Pereira (PSB), e agendou uma nova audiência para tratar do assunto entre agosto e setembro.

Vila Boa Esperança ocupa terreno que hoje pertence a UFRGS desde os anos 1960 | Foto: Arquivo Pessoal/Bernardete Menezes

Vila Boa Esperança

Já a Vila Boa Esperança é uma ocupação mais antiga. Moradores falam que foi iniciada ainda nos anos 1960, quando o terreno, localizado diante da atual Faculdade de Agronomia, ainda não pertencia à universidade federal, que entrou com um processo de reintegração de posse em 2009 após o Ministério Público exigir informações quanto a possíveis ocupações irregulares em seus terrenos. Após o estudo, o processo foi retomado pela UFRGS, que ganhou a reintegração em primeira instância, mas o Ministério Público determinou sua suspensão para que fossem realizadas audiências de mediação. Até o momento, aconteceram dois encontros e está em vigência um prazo para que a universidade apresente mais informações sobre a questão.

Erondina diz que os moradores receberam no final do ano passado a informação de que reintegração de posse poderia ser realizada já em 1º de janeiro deste ano. Oficialmente, a UFRGS alega que não há planos para a utilização do terreno uma vez que ele está inserido em uma área maior de preservação ambiental e que as casas da Boa Esperança estão localizadas em uma área de risco. Os moradores, porém, questionam esta argumentação alegando que não há relatos de deslizamentos de terra ou outros problemas comuns a áreas de risco. Além disso, dizem que, ao lado de ondem moram, há um condomínio de luxo construído recentemente que promoveu um desmatamento da vegetação, enquanto eles tentariam preservar o que há.

“A gente pede a concessão especial para fins de moradia. Nós estamos protegidos pela Lei 2220. Quando o terreno era da União, já tinha moradores ali. É um direito nosso”, diz Erondina. Além disso, ela afirma que caso a reintegração de posse seja efetuada, não serão apenas as 98 famílias da Boa Esperança que serão prejudicadas, mas também outras 300 de uma comunidade que fica acima do terreno e que tem como único acesso as ruas da Boa Esperança. “Se tiver pegando fogo em uma casa, os bombeiros vão subir pela escada? Se tiver alguém passando mal, a ambulância vai subir pela escada?”, pondera.

Ana Luísa Zago de Moraes, defensora regional de direitos humanos da Defensoria Pública da União (DPU), afirma que o órgão pleiteia que o terreno seja concedido para fins de moradia e que, diante da negativa da UFRGS, ajuizou ação pública para obter o reconhecimento judicial de concessão especial. “A prioridade número 1 é a negociação. Nós esperamos que essa reintegração de posse seja suspensa e que seja analisado esse direito de pessoas que estão há mais de cinco anos numa área pública”, diz.

Representantes de diversas comunidades participaram da audiência | Foto: Henrique Ferreira Bregão/CMPA

Segundo ela, um estudo feito pela DPU que constatou que a comunidade é composta por famílias de baixa, que não possuem outro imóvel, não realizam atividades comerciais no local e ocupam um espaço de no máximo 250 m², o que são critérios exigidos para que a área seja reconhecida como uma concessão especial. No entanto, a defensora salienta que por a UFRGS se tratar de uma autarquia autônoma, precisaria ela decidir pela cessão da parte ocupada de seu terreno para a União para que a regularização da área pudesse ser realizada. Representante da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) na audiência disse que o órgão estaria disposto a trabalhar pela regularização da área.

“A reivindicação é que a área volte para a União. O Patrimônio da União já dialoga com os movimentos através do Minha Casa Minha Vida – Entidade. Pedimos que a Reitoria passe a parte da terra para a União e possa haver o processo de regularização”, diz Ceniriani, no MNLM.

A Reitoria da UFRGS, no entanto, também não encaminhou representantes para a audiência. Pela universidade, compareceram apenas a representação estudantil e do corpo técnico, que se mostram favoráveis ao pleito das famílias.

Coordenadora de Comunicação do Sindicato dos Técnicos Administrativos da UFRGS (Assufrgs), Bernadete Menezes salientou que representantes do sindicato estiveram na Boa Esperança recentemente e que um geólogo que os acompanhou constatou que não havia risco de acidentes ambientais. “O grande argumento da universidade é que é uma área de risco. Engraçado que do lado tem um condomínio de luxo”, disse.

A vereadora Melchionna lembrou que a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), neste ano, aprovou a doação de um terreno seu para regularização fundiária de uma ocupação habitacional. “A universidade não tem por objetivo despejar pessoas e botar 98 famílias na rua que estão há 50 anos morando e ao mesmo tempo já tem toda uma relação com a comunidade, se entendem como comunidade”, diz.

Como encaminhamentos, ela disse que a Cuthab irá formalizar um pedido oficial de reunião com a Reitoria da UFRGS, que irá visitar a Vila Boa Esperança para realizar um relatório próprio e que irá apoiar as manifestações da comunidade.


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