Franklin Cunha (*)
Diante dos infindáveis debates sobre a permanência ou retirada dos crucifixos nas repartições públicas e diante de tão eruditos personagens a dela participar, atrevo-me, modestamente, às seguintes reflexões.
Em pleno regime fascista, ano de 1935, Carlo Levi, intelectual judeu-italiano para fugir do regime de terror homicida do norte do país, resolve se refugiar num pobre e perdido vilarejo do sul. Lá, ele se vê diante de uma gente simples que luta arduamente para sobreviver. Convivendo com esses habitantes, Carlo passa a apreciar a sabedoria peculiar desse povo do campo e escreve um livro chamado Cristo Parou em Eboli, no qual se baseou o filme. Reproduzo uma parte do livro: “Passaram-se muitos anos repletos de guerra e daquilo a que é costume chamar História. É-me grato regressar em imaginação a esse mundo diferente, escondido na dor e na tradição, ignorado pela história e pelo Estado, eternamente passivo.
Para os camponeses o Estado é mais distante que o céu e também mais temível porque nunca está ao seu lado. Cristo desceu ao inferno subterrâneo do moralismo hebraico para lhe abrir as portas no tempo e marcá-las para toda a eternidade. Mas naquela terra obscura, sem pecado e sem redenção, onde o mal não é de origem ética mas sim uma dor terrena que está embutida sempre nas coisas, Cristo não desceu. Cristo parou em Eboli. ”
Quando os redatores da Constituição da União Européia a estavam elaborando, a Igreja Católica os pressionou para que mencionassem explicitamente “as raízes cristãs” dessa comunidade. Os constitucionalistas, no entanto, decidiram suprimir qualquer identificação filosófica ou religiosa que certamente causaria conflitos e exclusões. Além do mais, a raiz básica do Ocidente não é cristã, já que o cristianismo tem raízes na religião judaica e na filosofia helênica. Assim , em rigor, a Igreja deveria ter se referido às raízes pagãs e judias da civilização ocidental. Cristo, um judeu, nunca se propôs a criar o cristianismo, mas reformar a religião hebraica.
Na realidade, o que define o Ocidente é a modernidade, a qual se construiu em oposição ao cristianismo e à Igreja Católica. Os acontecimentos que originaram o mundo moderno, a ciência e a técnica, a cultura urbana, a liberdade de expressão e de cultos, a extinção da escravidão, a emancipação da mulher, a queda dos tabus sexuais, a democracia política foram obras da ilustração e do livre pensamento, alheios à religião e condenados pela Igreja.
Diante dessas reflexões históricas, fica difícil acreditar que, simplesmente, um crucifixo pendurado nas supostamente austeras paredes dos tribunais, viria colaborar para a prática de uma justiça mais dedicada, equânime e realmente a serviço da proteção e da defesa das marginalizadas e pobres populações de nosso país, para as quais nem as religiões e nem o Estado nelas ainda chegaram.
(*) Médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras
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