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20 de junho de 2020
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12:39

‘Mais que uma cesta básica’: na pandemia, projeto arrecada doações para famílias chefiadas por mulheres

Por
Sul 21
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33 famílias chefiadas por mulheres em Porto Alegre e na região metropolitana já foram ajudadas pelo projeto. Foto: Reprodução/Facebook

Annie Castro

Desde abril, 33 famílias chefiadas por mulheres e que estão em situação de vulnerabilidade social e enfrentando dificuldades diante da pandemia do novo coronavírus já foram auxiliadas por um projeto criado em Porto Alegre. A iniciativa se propõe a doar cestas básicas e outros itens, como botijões de gás e cobertores, principalmente para mulheres que criam seus filhos sozinhas. As famílias que já receberam doações são moradoras dos municípios de Alvorada, Viamão, Canoas, Novo Hamburgo e dos bairros Rubem Berta, Passo das Pedras, Cruzeiro e Lami, em Porto Alegre.

Segundo a jornalista e produtora cultural Liege Ferreira, idealizadora do projeto ‘Ação Emergencial Mulheres e Crianças em Vulnerabilidade Social – covid-19’, a iniciativa já ajudou famílias de mulheres que, antes da pandemia, costumavam fazer faxinas, de mulheres que não conseguem trabalho pois não têm com quem deixar seus filhos, de mulheres que os pais dos filhos não pagam pensão e famílias de catadores de material reciclável, por exemplo. “Tem também famílias de mulheres que tiveram o [programa] Bolsa-família retirado da noite para o dia e de muitas que não receberam o auxílio emergencial do governo. Muitas vezes os adultos das famílias não têm roupa ou documentos. Além da covid-19, esse é outro impedimento para que consigam algum trabalho”, complementa.

Liege começou a arrecadar doações em março deste ano, quando passou a participar de um grupo no Facebook criado para auxiliar mulheres financeiramente durante a pandemia. Na plataforma, moradoras de diversas partes do país relatam necessidades, como falta de dinheiro para pagar a conta de luz, comprar gás ou alimentos. Outras integrantes ajudam como podem, pagando boletos ou fazendo doações.

Ali, Liege começou a entrar em contato e a conversar com algumas mulheres de Porto Alegre e da região metropolitana que haviam pedido ajuda. “A partir dessas conversas fiz uma lista com esses nomes e comecei a pedir apoio da minha rede de amigos para auxiliá-las. Outras mulheres começaram a me pedir ajuda, inclusive as que não tinham conseguido ser atendidas pelo grupo e vizinhas e familiares das primeiras mulheres que ajudei”, lembra.

A diarista Daiane da Silva Brum, de 34 anos, conheceu Liege no mesmo grupo, após publicar que estava precisando de alimentos. “Ela [Liege] comentou que ia levar as coisas e já me ajudou umas três vezes”, conta Daiane. Moradora do bairro Passo das Pedras, na Zona Norte de Porto Alegre, ela vive sozinha com os cinco filhos em uma peça de madeira e é praticamente a única responsável por sustentar as crianças, com idades entre 11 anos e 5 meses. “A Alice, de 5 meses, tem o pai dela que dá fralda e leite. Ele não dá sempre porque às vezes não tem dinheiro, mas ele não abandonou ela. Os meus mais velhos têm só a mim, não têm a ajuda dos pais”, explica. Além disso, Daiane também auxilia a pagar o aluguel de sua mãe, que tem 80 anos, e divide com ela todas as doações que recebe de alimentos.

Por não ter carteira assinada, Daiane já enfrentava dificuldades financeiras antes de o vírus se espalhar, mas, com a chegada da epidemia a Porto Alegre, ela perdeu as diárias que fazia em três residências e viu as despesas de sua casa aumentarem, já que as aulas foram canceladas e as crianças passaram a precisar se alimentar somente em casa. “Do nada veio a pandemia, do nada eu não tinha mais serviço, a escola também parou e as crianças se alimentavam só lá, de segunda a sexta. Hoje a gente tá comendo e amanhã não sei, hoje a gente tem luz e amanhã não sei”, desabafa Daiane. “Por isso que quando me ajudam eu fico grata”, complementa.

Daiane é um dos exemplos de mulheres que de um dia para o outro perderam o Bolsa Família citados por Liege. Beneficiária do programa, ela já tinha visto neste ano o valor que recebia diminuir de R$ 500 para pouco mais de R$ 300 e, nesta quarta-feira, ao entrar no aplicativo, descobriu que seu cadastro havia sido cancelado. “Antes não tava cancelado, tava bloqueado só. Do nada apareceu cancelado. Aparece escrito que é para pegar a última parcela do auxílio [emergencial] e deu”, conta a diarista.

Diante das dificuldades que vem enfrentando, Daiana ressalta a importância da ação idealizada por Liege. Ela diz que o projeto não entrega apenas cestas básicas, mas também dá apoio moral e faz um serviço social que ela nunca viu antes: “Sou muito grata”.

Até o momento, a ação social já ajudou famílias de Alvorada, Viamão, Canoas, Novo Hamburgo e dos bairros Rubem Berta, Passo das Pedras, Cruzeiro e Lami, em Porto Alegre Foto: Reprodução/Facebooks

Foi no mesmo grupo que Paloma dos Santos conheceu o projeto. Moradora do bairro Lami, em Porto Alegre, ela trabalha como recicladora de materiais recicláveis e fazendo faxinas e é a única responsável pelos três filhos que vivem com ela. No grupo no Facebook, Paloma havia pedido doações de alimentos e de gás de cozinha e ajuda para pagar o aluguel. “Não tinha nada em casa. Os meus filhos estavam o dia inteiro sem comer nada. Então, ela [Liege] me chamou, comprou um lanche e mandou via motoboy para nós”, lembra.

Com o surgimento da epidemia, Paloma passou a encontrar cada vez mais dificuldades para conseguir faxinas e na venda das reciclagens que faz. “Está mais difícil. Antes eu conseguia tirar por dia pelo menos o leite e o pão das reciclagens, hoje já não consigo nem isso”, conta. Ainda, ela não conseguiu solicitar o auxílio emergencial porque, neste ano, ao se mudar para Porto Alegre, perdeu a documentação dos filhos. A família de Paloma já foi auxiliada pelo projeto três vezes. “Já recebi outras ajudas, de roupas e móveis que eu não tinha, mas no momento, de alimento, leite e gás de cozinha, ela [Liege] que sempre me ajuda. Foi deus colocou ela no nosso caminho”.

‘Mais que uma cesta básica’

Ao ir entregar as doações para a primeira família que iria ajudar, uma mulher que cuida sozinha dos quatro filhos em Taquara, Liege percebeu que entregar apenas cestas básicas com alimentos às pessoas não era o suficiente. “Ela não tinha nem gás para cozinhar. Ela estava cozinhando em uma lata no chão. A bebê dela de 7 meses estava há quase uma semana bebendo água com açúcar”, conta.

A partir de então, a jornalista e produtora cultural começou a entregar, além de cestas básicas, outros itens que as famílias precisam, como gás de cozinha, fraldas, caixas de leite, fórmula, kits de produtos de higiene e de limpeza e também alimentos que não estão nas cestas básicas já compradas prontas, como sardinha, molho de tomate, achocolatado, biscoitos. Liege também arrecada roupas, calçados, meias e brinquedos para as crianças e adultos. Dessa forma, toda família auxiliada recebe sempre uma cesta básica e o que Liege chama de “cesta mágica”, que seriam os outros itens arrecadados conforme a necessidade de cada família. Ainda, como prevenção ao novo coronavírus, o projeto também doa máscaras de proteção para as mulheres e as crianças.

Liege relata que também já foi em busca de suprir outras necessidades, como nebulizador e medicamentos. “Já ajudei uma das mulheres com o teto da sua casa, pois chovia dentro do quarto onde as cinco crianças dormem juntas. Ajudei também uma família a voltar para a sua casa, forneci transporte e alimentos”.

A ideia de dar um nome à iniciativa, assim como criar uma página para o projeto no Facebook, aconteceu porque Liege sentiu que precisava publicizar a ação para que mais pessoas se sentissem impelidas a ajudar. “Eu entendi que eu poderia ser a ponte entre as pessoas que precisam de ajuda e as pessoas que querem ajudar, especialmente nesse momento político tão absurdo que estamos vivendo em conjunto com uma pandemia”.

Liege, além de idealizadora, é responsável pelo gerenciamento do projeto, tendo ajuda de seu companheiro nas coletas e na organização das doações e nas entregas. O projeto também recebe auxílio de amigos de Liege para a coleta e entrega das doações, uma vez que ela e o companheiro não têm carro. “Vou sempre de máscara, munida de álcool gel. Incentivo-as [mulheres e famílias] a higienizarem as embalagens dos produtos com a água sanitária que levo para elas”, afirma, sobre como tem feito para realizar as doações de maneira mais segura.

Doação personalizada

Liege explica que as pessoas entram em contato com ela, seja de forma direta, pelo Facebook ou pelo telefone, ou por intermédio de mulheres que o projeto já ajudou ou continua ajudando. “Percebi que ao levar esses mantimentos para uma família, elas geralmente dividem com as mães, cunhadas e até com as vizinhas, então passei a levar para essas outras pessoas também. Acontece também de eu ir nas casas e elas pedirem ajuda para suas familiares que estão precisando. Já teve algumas mulheres e crianças que me viram entregando doações e me pediram, então conversei com essas pessoas e as adicionei na lista”, relata.

A idealizadora do projeto explica que, no momento em que a pessoa entra em contato para pedir ajuda, ela busca compreender qual é a situação da família em questão, se recebem algum auxílio, se pagam aluguel, quantas crianças e quantos adultos têm na casa. “Apesar de sempre doar os mesmos itens acaba que cada família recebe uma doação personalizada, pois, no caso das roupas e calçados, por exemplo, eu verifico os tamanhos para realizar uma doação efetiva, de acordo com as suas necessidades”, diz.

Embora o projeto seja voltado para mulheres que criam seu filhos ou netos sozinhas, Liege conta que também já ajudou famílias maiores que não são, necessariamente, chefiadas por mães solo: “Como muitas pessoas acabaram vindo falar comigo e suas situações também são difíceis, eu acabo ajudando algumas famílias grandes. Mas meu contato é sempre com as mulheres”. As doações são realizadas de acordo com a urgência que cada família tem e, desde abril, Liege vai semanalmente a algumas casas.

Nitchele Alves, moradora de Novo Hamburgo, foi uma das mulheres que conheceu o projeto por meio de outras pessoas que foram auxiliadas por ele. “Conheci a Liege por uma moça que ela ajudava perto da casa da minha mãe, em Porto Alegre. Já vai ser a terceira vez que estou recebendo ajuda”, conta Nitchele, que vive com o esposo e com os dois filhos, de 7 e 2 anos. Antes do início da epidemia, Nitchele e o marido haviam começado a atuar como autônomos, vendendo bolos no pote e trufas. “Quando começou o coronavírus, não conseguimos continuar e tivemos muito prejuízo, incluindo empréstimos em bancos para fazer dar certo nosso negócio”, relata. Com os empréstimos e a perda da renda, eles ficaram endividados e tiveram que vender quase tudo que tinham em casa para não perder sua residência própria, pois não tinham mais como custear as parcelas da casa, as contas fixas e comprar alimentos. Nitchele relata que tentou solicitar o auxílio emergencial, mas seu cadastro já foi negado três vezes.

Além de alimentos e itens como gás de cozinha, as famílias também recebem do projeto brinquedos para as crianças. Foto: Elisângela Quadros/Arquivo pessoal

A família de Elisângela do Nascimento Vargas de Quadros também é uma das que vêm sendo auxiliadas pelo projeto há mais de dois meses. Elisângela vive com o esposo e com os dois filhos, um de 5 anos e outro de 2, em Alvorada e também conheceu Liege após pedir ajuda no grupo no Facebook. “Ela me ajudou três vezes já. Na primeira vez, ela trouxe o gás de cozinha, que eu precisava, cesta básica, caixa de leite, fralda, pomada e produtos de higiene. Na segunda e terceira também trouxe cesta básica, roupas e produtos de limpeza”, diz.

Elisângela conta que, como ela e o marido estão desempregados, sua família já enfrentava dificuldades financeiras. “O que mudou é que agora está mais difícil arrumar emprego. Meu esposo já foi no SINE, já pediu vaga por e-mail e nada”, explica. A renda que a família tem vem de trabalhos que seu esposo faz em um ferro velho. “Nós pagamos aluguel, então esse dinheiro do trabalho que ele faz é só para pagar o aluguel, aí não sobra nada”.

Após começar a receber auxílio do projeto, Elisângela pediu doações de alimentos para sua sogra. É assim que a ação idealizada por Liege avança, chegando a dezenas de famílias e se fortalecendo desde o início da pandemia.


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