Opinião
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24 de janeiro de 2023
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08:01

Kiss, 10 anos: tão longe, tão perto (Coluna da APPOA)

Foto: Dartanham Baldez Figueiredo
Foto: Dartanham Baldez Figueiredo

Volnei Antonio Dassoler e Vanessa Solis Pereira (*)

No próximo dia 27 de janeiro, o incêndio ocorrido na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, em que 242 jovens morreram e 636 sobreviveram, completará 10 anos. Quem são e como estão os sobreviventes e os familiares das vítimas hoje? Como estão lidando com as consequências físicas e emocionais do horror vivido naquela noite, um horror que implodiu a realidade e provocou uma ruptura radical e traumática na vida de cada um? E quais são as narrativas construídas e compartilhadas pela cidade e seus moradores a partir dessa vivência?  

Um acontecimento como esse, queiramos ou não, deixa suas marcas. É inegável que podemos nos referir a um antes e a um depois em relação a ele. Não há morador da cidade que, fora dela, não seja reconhecido por associação à tragédia da Boate Kiss. A solidariedade foi a força motriz de um movimento coletivo potente e inclusivo que acolhia e envolvia a todos indistintamente. Contudo, aos poucos, essa reação perdeu seu ímpeto, e o pedido de volta à normalidade e à retomada da rotina anterior impôs silêncio e vergonha à dor e à luta pela justiça. Tal feito institui uma nova abordagem que organiza e reduz o fato à dimensão individual em relação ao ocorrido. Reconhecer que a história de vida das vítimas, sobreviventes e familiares é parte da história da própria cidade recoloca cada um em uma outra pauta com o evento e seus desdobramentos, posição implicada com o semelhante e com o destino da pólis. Nesses termos, para além dos efeitos intransferíveis que recaíram individualmente, localizar e dar visibilidade à face pública e coletiva do trauma e do luto é um mandato social irrecusável que permanece atual. Se o incêndio e seus restos traumáticos pertencem à cidade, temos um compromisso na transmissão transgeracional do que houve justamente porque uma perda dessa natureza exige, em seu processo de elaboração, memória e historicização, a participação do Outro e dos outros e o reconhecimento por parte deles.

Nesse contexto de intenso pesar, mas também de solidariedade, além do aspecto da memória, a questão da justiça se coloca como um dos eixos base deste drama. Sua relevância se deve ao fato de que a intervenção da Justiça impacta de forma direta no estabelecimento da confiança necessária às instituições, prerrogativa de uma sociedade democrática na qual as estruturas simbólicas operam como mecanismos de mediação da ética do cuidado e do viver em comum. Já contamos 10 anos de impunidade e de espera por algum grau de responsabilização por parte do poder judiciário, circunstância agravada pela anulação do julgamento ocorrido em agosto de 2022. Tal decisão nos distancia ainda mais da materialidade do fato e faz com que toda e qualquer sentença definitiva que possa vir a ser proferida no futuro seja irremediavelmente acompanhada por uma perda parcial e significativa do seu alcance e valor simbólico. Assim, quanto mais distantes no tempo se situarem acontecimento e julgamento, mais injusto parecerá o que for estabelecido, de tal forma que a decisão proferida seja vivida como um novo ato de violência que vem se juntar à condição de vulnerabilidade já existente: a ferida aberta pela perda concreta dos entes queridos será entremeada, então, pela sensação de desamparo e descaso, testemunho de um prejuízo cabível de ser atribuído ao funcionamento e à estrutura de determinadas instâncias do Estado brasileiro.

Uma consequência deste fracasso, síntese da nossa Justiça à brasileira, é a autorização velada de julgamentos moralizantes no campo social, já que o que deveria ter sido validado no âmbito legal perde seu rigor e seu tempo. Esta dinâmica põe em cena posicionamentos individuais baseados no senso comum que desqualificam e desacreditam a legitimidade das demandas situando-as em exclusão à dinâmica da vida social. 

Com o passar dos anos, este descompasso se faz ver na proliferação de manifestações que ganham força nas ruas e nas redes sociais: “é preciso seguir em frente”, “já passou”, “vocês ainda estão nisso?”, “deixem eles descansarem”, “vocês não vão ganhar nada com isso” são frases endereçadas cotidianamente aos movimentos que lutam por memória e justiça. Tais argumentos, à primeira vista, soam como defensivos e, muitas vezes, até mesmo como um ato solidário com quem sofreu a dor de uma perda avassaladora. A lógica que rege esta perspectiva pareceria se fundar na concepção de que tocar na ferida resultaria em mais dor; sendo assim, uma intenção de “cuidado” estaria aí colocada. Mas será que a escolha de calar sobre um sofrimento de tamanha complexidade amenizaria a dor? Em que medida seria possível elaborar uma perda quando se tem um interdito sobre ela? Silenciar seria um ato equivalente a descansar? 

Mesmo que não intencionalmente, e inversamente ao que muitos postulam, esses discursos e gestos carregam em si um potencial violento de anulação da dor do outro, pela defesa explícita do impossível: a superação do acontecido como fato passado e sem consequências. Nesse contexto de indiferença e estigmatização, no qual se recusa a dimensão coletiva do trauma e do luto, sujeitos são forçados a um silenciamento solitário, montagem que dificulta o processo de amarração imaginária e simbólica junto à trama social que poderia fazer borda ao real da morte. 

 Quais seriam os efeitos de um não dito ou de um desmentido para as próximas gerações? Temos uma responsabilidade coletiva frente a essa dor? Hannah Arendt, em seu texto “Responsabilidade coletiva”, nos diz que, ao fazermos parte de uma sociedade humana, tornamo-nos responsáveis pelos feitos de tal coletivo ao longo da história. Diz ainda que somos responsáveis inclusive por aquilo que não fizemos. Para fundar suas afirmações, a autora faz uma distinção entre culpa e responsabilidade: para ela, seríamos culpados pelas nossas ações e deveríamos ser julgados, individualmente, pelos crimes que cometemos. A culpa é sempre individual. A responsabilidade, no entanto, seria sempre coletiva. Miriam Debieux Rosa, por sua vez, no livro A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento, alerta-nos em relação aos efeitos devastadores de um não dizer para as gerações seguintes, repercussões que poderão vir a se expressar na forma de sintomas, angústia ou inibições ou, ainda, gerar repetições em ato, desatualizadas e fora do contexto.

Diante disso, vale destacar aqui o slogan da campanha dos 10 anos: “Resgatar a memória é construir o futuro”, promovido pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) juntamente com o coletivo Kiss: que não se repita e o Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, dentre outros parceiros em alusão ao evento que acontecerá nos próximos dias 25, 26, 27 e 28 de janeiro em Santa Maria. Mais do que um slogan, é um convite. Mais do que um convite, é um compromisso que abre espaço de lugares de fala, de pertencimento e de reconhecimento no espaço público, aproximando e colocando em cena a população numa operação dialética que abre a possibilidade de construção de um tipo de memória que nos faz testemunhas e partícipes da aposta de transformação de uma dor individual em uma experiência compartilhada.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ROSA, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta – Fapesp, 2ª edição 2018.

Volnei Antonio Dassoler é Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). dassoler@terra.com.br 

Vanessa Solis Pereira é Psicanalista, membra da APPOA e Instituto APPOA, integrante do Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria e do Coletivo Testemunhos da Pandemia.  vanessasolisp@gmail.com

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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