Opinião
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6 de janeiro de 2023
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14:52

Memórias de uma viagem inesquecível para a posse de Lula (por César Daniel Rolim)

Virada do ano ocorreu em Cristalina (GO) (Arquivo pessoal)
Virada do ano ocorreu em Cristalina (GO) (Arquivo pessoal)

César Daniel Rolim (*)

E viva a vida assim […]
Controlando esse querer incessante
Tentando tudo resolver
Que seja só de coragem
Continuar a labuta
Devagar e sempre na luta

Viva a vida (2022) – Fátima Farias [1]

No retorno de Brasília, já no dia 2 de janeiro, em uma das paradas, na estrada, para fazermos uma refeição, recebo o convite para escrever um texto que abordasse as minhas impressões sobre o momento que vivemos e especialmente em relação à excursão que estávamos realizando para a posse de Lula. No primeiro momento, achei que seria algo tranquilo, pois bastaria reproduzir as impressões que tive durante os quatro dias que convivemos, especialmente no domingo, primeiro dia de 2023. Ocorre que ao parar para iniciar a escrita, recordei a minha dificuldade em descrever sentimentos individuais em um texto público. Essa mania de me enxergar como um sujeito que faz parte e pensa o mundo a partir de coletivos. Somado a essa característica comecei a lembrar de dezenas de pessoas que foram importantes na minha formação enquanto educador e militante: familiares, educadoras(es), amigas(os) que há muito não converso, colegas de Universidade, estudantes que convivi durante esses mais de 15 anos como educador de escolas públicas, além das(os) pessoas que conheci durante a viagem, especialmente, as(os) companheiras(os) de excursão que iniciou, em Porto Alegre, no dia 30 de dezembro último. O resultado foi que a tarefa se tornou quase inexequível, porque o universo de informações e memórias relevantes para serem registradas eram tão numerosas ao ponto de não conseguir concluir o texto ainda nesta semana para ser publicado em tempo no grande Sul21. 

Como educador da área da História, o tempo (a passagem do mesmo e a relação entre passado-presente-futuro) é uma temática sempre presente no meu cotidiano de trabalho em sala de aula. Com isso, imaginei que poderia iniciar a escrita com algumas lembranças do período em que eu era um estudante de escola pública estadual, aliás, a mesma que a minha mãe trabalhava, na Ilha Picada Norte, atualmente parte do município de Eldorado do Sul. Lembro dos relatos dela, enquanto educadora por mais três décadas, que iniciou as suas atividades no governo Leonel Brizola, no final da década de 1950, em uma brizoleta (pequenas escolas construídas na época). Sempre ressaltava a importância do investimento dos governos na educação pública e na melhoria da qualidade de vida do povo trabalhador. Dizia ela que não bastava apenas trabalharmos a vida inteira se o governo não investir em oportunidades para as pessoas terem uma vida digna. 

Viagem foi marcada pela solidariedade e emoção (Arquivo pessoal)

Quando houve uma atividade de apresentação de quem estava no ônibus na excursão rumo a Brasília, notei que estava entre dezenas de colegas educadores do estado do RS. Em cada fala, percebia as semelhanças entre trajetórias de vida, percepções de mundo e expectativas em relação ao novo governo federal em especial na importância do investimento na educação pública e em oportunidades de uma vida digna para quem mais precisa das políticas públicas. Isso fez com que eu tivesse uma sensação de pertencimento e ótima acolhida naquele grupo. Em tempos de governos neoliberais que fecham escolas, inclusive a que eu estudei até a quarta série do então Primeiro Grau, configura-se como um alento a perspectiva de um novo governo que representa um projeto que governou este país por mais de treze anos e que investiu massivamente na educação pública. Milhões de famílias com poucos recursos econômicos passaram a ter entre seus filhos e netos: médicos, engenheiros, arquitetos, entre outras profissões que não eram características daquelas classes sociais que não foram prioridades para os governos que sucederam ao golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016. 

Esta conjuntura, inaugurada com a injusta deposição de Dilma, trouxe retrocessos sociais e econômicos para a maioria da população brasileira. Como a própria ex-presidenta comentou na época, não era apenas um golpe contra ela e o seu partido e sim contra o povo e os seus direitos básicos. Durante a viagem, em conversas com as(os) colegas de ônibus e de militância sobre o quanto foi difícil esse contexto posterior ao golpe de Estado, acirrado com o lavajatismo (que originou o bolsonarismo) [2], lembrávamos do crescimento da mentalidade fascista, do individualismo, da desinformação a partir das fake news, da violência, da superexploração do trabalho, do racismo estrutural [3] e da precarização generalizada da vida da maioria da população com a volta da fome como consequência nefasta. Esse cenário trágico foi acirrado com o projeto de aniquilamento das instituições criadas pela Constituição de 1988 [4] e com a necropolítica [5] do governo neofascista-genocida de Bolsonaro, eleito a partir da condenação farsesca e injusta prisão de Lula, em 2018. 

Durante as dezenas de horas de viagem e nas paradas na estrada, conversei com todas(os) que estavam no ônibus: colegas educadoras(es), estudantes, trabalhadores da área da saúde e de outras áreas, militantes sociais de cidades, tais como, Canoas, Pelotas, Cachoeira do Sul, Camaquã, Osório, Arambaré e Porto Alegre. Em comum o sentimento de esperança, de retomada das políticas públicas fundamentais para uma vida digna para quem mais precisa do Estado para sobreviver. Na memória estavam programas como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular, Luz para Todos, Fortalecimento do SUS, Mais Médicos, Política de valorização do salário mínimo, Política de Ações Afirmativas que promoveu as cotas nas universidades e concursos públicos, entre tantos outras políticas públicas que ofereceram oportunidades e transformaram a vida de milhões de pessoas.  

Ao falar com o colega educador João Ritter sobre a utilização criminosa da religião por parte do bolsonarismo e sua retórica do ódio [6], lembrei do período em que estudei em escolas onde tive contato com a Teologia da Libertação. Comentei que gostava das aulas de Ensino Religioso, com textos de Frei Beto e Leonardo Boff que contextualizavam as temáticas do cristianismo e as problematizavam a partir da análise da sociedade do período, final dos anos 1980 e início dos 1990. Encontrava sentido em estar em sala de aula a partir de aulas como aquelas. As levo como uma inspiração para a minha prática como educador que busca problematizar a realidade que vivemos com a perspectiva da educação para a liberdade, como afirma Paulo Freire. Este autor que li pela primeira vez nas aulas da quinta série do então Primeiro Grau e que durante a graduação em História (onde tive o contato com excelentes educadores como Vera Barroso e Ricardo Fitz) foi/é um autor fundamental para entender a importância de uma educação libertadora. 

Um dos momentos marcantes da viagem foi a virada do ano num paradouro da cidade de Cristalina-GO onde brindamos e celebramos o início de 2023 junto a outras excursões de várias partes do país que rumavam para Brasília. Neste e em outros momentos tive contato com uma grande diversidade cultural o que reflete a potência criativa e transformadora do nosso povo. Já em Brasília, tanto no alojamento que abrigava diversas caravanas, quanto na Esplanada dos Ministérios, já no domingo, dia primeiro, conversei com pessoas de SP, MG, PE, BA, PR. Todas extremamente esperançosas e alegres com a perspectiva de mudança e reconstrução do país.  No ônibus e também na Esplanada conversei com colegas municipárias(os) da área da saúde: Débora, Laésio e Alexandre. O trabalho desenvolvido por estes e milhares de outros profissionais da saúde pública, desde de 2020, foi essencial para que a tragédia, que vitimou/vitima cerca de 700 mil vidas, não fosse ainda maior. O fortalecimento das políticas públicas na área da saúde, em nível federal, se refletirá mesmo em estados e municípios com administrações neoliberais, como RS e Porto Alegre. 

Vivenciei momentos emocionantes durante a viagem e mais especialmente na cerimônia de posse, com os discursos de Lula, a subida da rampa do Planalto e a passagem de faixa presidencial com o grupo de pessoas tão representativo do povo brasileiro. Além disso, foi muito bom conviver com colegas educadoras da direção e militantes do CPERS tais como Helenir, Juçara, Sônia, Dina, Églia, Paula, Letícia e outras que tive o prazer de conviver e compartilhar momentos de alegria. Colega educadora e de direção do SIMPA, Luciane. Thayse, Maí, Ico, Matheus, Gílson, Ronimar e César, todas e todos incansáveis lutadoras(es) sociais que permanecerão na ação militante, esperançando em busca do inédito viável, como aponta Freire [7], por um país que lute para acabar com todas as formas de desigualdade, como afirmou Lula em seu discurso de posse, no Parlatório do Planalto: “ainda que arranquem todas as flores, uma por uma, pétala por pétala, nós sabemos que é sempre tempo de replantio, e que a primavera há de chegar. E a primavera chegou”

Notas

[1] FARIAS, Fátima. Viva a vida. In: ______. Um poema por dia. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2022. 

[2] STREK, Lênio; CARVALHO, Marco Aurélio. O livro das suspeições: o que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito? Ribeiro Preto: Grupo Prerrogativas, 2020.

[3] ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2019.

[4] ARANTES, Aldo (org.). Por que a democracia e Constituição estão sendo atacadas? Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019. 

[5] MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

[6] ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio (crônicas de um Brasil pós-político). Goiânia: Editora Caminhos, 2021. 

[7]  FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

[8] Discurso de Lula no Parlatório do Palácio do Planalto na posse do dia 1 de janeiro de 2023. Disponível em: https://bityli.com/MsdAh. Acesso em: 3 de janeiro de 2023. 

(*) Professor de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, Diretor de Comunicação do SIMPA e Servidor Técnico-Administrativo da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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