Opinião
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30 de dezembro de 2022
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15:07

O governo Lula 3: retorno ao desenvolvimentismo? (por André Moreira Cunha)

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

André Moreira Cunha (*)

O Gabinete de Transição Presidencial apresentou o seu “Relatório Final” no qual faz o diagnóstico do que denomina de “o desmonte do Estado brasileiro e das políticas públicas durante os quatro anos do governo Bolsonaro.” (p.6). O coordenador do Grupo de Transição e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, resumiu da seguinte forma o quadro encontrado: “Desde que entrei na vida pública, nunca vi nada parecido … A impressão que se tinha é de que não havia gestão e que tudo era decidido aleatoriamente … Há documentos desaparecidos, há apagões de dados que sempre existiram em governos anteriores e há rombos financeiros inexplicáveis.”. 

Há um relativo consenso entre analistas com distintas visões teóricas e inclinações políticas de que a “Era Bolsonaro” deixa um legado negativo. Mesmo os defensores das políticas de recorte neoliberal, particularmente o “Teto de Gastos”, as mudanças na legislação trabalhista e as privatizações, admitem que o Estado brasileiro foi conduzido a um ponto de se inviabilizar a execução das políticas públicas em áreas essenciais como saúde e educação. Diante desta realidade, estes mesmos analistas manifestam um temor de “volta ao passado” no governo Lula 3. Para o sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o risco colocado é de “…retomar aos modos de trabalho e políticas desastrosas, econômicas e sociais, que levaram ao país à maior recessão de sua história, desencadeando uma crise política que resultou no desastre do bolsonarismo.”. 

Para Schwartzman, o pior desempenho da história da economia brasileira, verificado entre 2016 e 2022, quando a renda per capita variou em -0,5% a.a. (ver tabela 1), não está relacionado com a “Ponte para o Futuro” adotada no período, mas com as políticas da “Era PT” (2003-2015). Esta mesma interpretação é verificada na lavra de próceres do mercado financeiro e de economistas que ocuparam funções de alto relevo na República em períodos onde as políticas de desmonte do Estado e de liberalização econômica foram prioridades. Tais governos não entregaram crescimento robusto com inclusão social ou estabilidade macroeconômica. Há uma gama variada de análises críticas ao suposto “desenvolvimentismo” dos governos petistas em artigos de opinião reunidos no portal do think tank “Casa das Garças”. Mais difícil será encontrar nestes analistas o mesmo esforço em reconhecer, como fazem intelectuais conservadores como Francis Fukuyama ou os economistas do FMI, que o fracasso do neoliberalismo germinou o avanço dos governos iliberais, dentre os quais o que agora finda no Brasil.

O conceito de desenvolvimentismo tem sido muito mal tratado. Usualmente ele é confundido com “ativismo estatal” em geral, o que é um equívoco. Conforme nos esclarece o Professor Pedro Fonseca, no mais robusto estudo acadêmico sobre o tema, o desenvolvimentismo é “… a política econômica formulada e/ou executada, de forma deliberada, por governos (nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da produção e da produtividade, sob a liderança do setor industrial, transformar a sociedade com vistas a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação de seus problemas econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do sistema capitalista.”. Há poucas dúvidas que os governos do PT se caracterizaram pelo ativismo estatal. Porém, é passível de ampla discussão se os mesmos foram “desenvolvimentistas” no sentido antes exposto. Conforme evidenciamos em artigos recentes – “Lula e o colapso do crescimento” e a “Nova Década Perdida” –, nas últimas duas décadas houve exatamente o contrário de “desenvolvimentismo”: a desindustrialização se aprofundou e não houve ganhos de produtividade dignos de nota.

Para os economistas liberais, refratários ao ativismo estatal indutor de mudanças na estrutura de produção e de distribuição da riqueza privada, tais distinções não seriam relevantes. Eles enfatizam a clivagem entre as “políticas corretas”, usualmente as adotadas durante os governos em que atuaram diretamente ou cujos tomadores de decisão assumiram posições convergentes com as por eles propugnadas; e as “políticas erradas”, sendo estas associadas ao não conhecimento da boa teoria econômica. Não raramente, as “políticas erradas” são aquelas marcadas pelo ativismo estatal. Todavia, tal perspectiva ganha contornos mais complexos quando se observa que: (i) o desempenho econômico brasileiro foi muito superior na era desenvolvimentista; e (ii) do ponto de vista de comparações internacionais, as economias mais bem-sucedidas em sustentar longas trajetórias de expansão são as que optaram por não seguir estritamente o caminho proposto pela agenda neoliberal, conforme reconhece o próprio FMI

Os economistas liberais brasileiros têm dificuldades em explicar o fracasso de países tão grandes e complexos como o Brasil, que compartilham várias de suas características institucionais, e que implementaram as políticas de redução do Estado e de liberalização recomendadas por eles. O caso do México é particularmente destacado. Nos últimos trinta anos este país manteve níveis baixos de gasto e de arrecadação – em cerca de 10 p.p. do PIB menores do que o Brasil – liberalizou sua economia, integrou-a estruturalmente com seus vizinhos, mas não escapou da “armadilha da renda média”. Seus níveis de crescimento foram pífios (ver tabela 1). 

Os números e as suas interpretações

Não é trivial o exercício de avaliar o desempenho dos governos, particularmente em uma quadra histórica onde a sociedade está polarizada e se projeta grande desconfiança sobre o conhecimento especializado. A Economia, que é um dos ramos das Ciências Sociais, possui um arsenal amplo e diverso de teorias e de metodologias que permitem minimizar os diversos vieses criados pela subjetividade. Todavia, as próprias teorias e metodologias são construídas a partir de aspectos ontológicos, epistemológicos e heurísticos não neutros. A interpretação dos resultados gerados por suas análises e as consequentes derivações normativas são ainda mais suscetíveis às influências dos valores impregnados nos analistas. Por isso mesmo, a construção de políticas públicas nunca é plenamente neutra diante das prioridades derivadas da subjetividade dos agentes por elas responsáveis. Não à toa, Keynes propugnava que a Economia é uma ciência moral.   

Além de buscar identificar os fatos objetivos da realidade social, há o desafio de se estabelecer os elos causais que os formatam. Aqui, nem mesmo o uso da linguagem matemática garante a separação plena entre as convicções (ou interesses) dos analistas e o resultado de suas interpretações. O estudo sobre o desempenho dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2003 e 2015 oferece insights importantes nesta seara. Até porque, seus defensores e críticos sempre o colocam como um marco de referência

A tabela abaixo mostra o crescimento do produto interno bruto (PIB) por habitante – ou renda per capita – de economias selecionadas. 

Tabela 1. Crescimento da Renda Per Capita de Economias Selecionadas, 1951-2022 (% a.a.)

    1951-1980 1981-2002 2003-2015 2016-2022
1 China 4,7 8,5 9,2 5,6
2 India 1,4 3,5 6,2 4,3
3 Vietnã 0,6 4,5 5,2 4,6
4 Turquia 3,1 2,3 4,5 3,2
5 Indonésia 2,9 3,2 4,2 3,0
6 Polônia 2,9 1,3 3,9 3,7
7 Taiwan 6,0 5,8 3,8 3,4
8 Rússia (Ex-URSS) 3,9 -1,0 3,7 0,9
9 Filipinas 2,7 0,1 3,6 2,4
10 Argentina 1,8 -0,4 3,5 -1,0
11 Colômbia 2,3 1,1 3,4 1,8
12 Coreia do Sul 5,6 6,9 3,3 2,2
13 Tailândia 3,9 4,9 3,3 1,5
14 Malásia 3,0 3,7 3,2 2,1
15 Chile 1,6 2,9 3,2 1,1
16 República Tcheca 3,5 1,2 2,5 1,9
17 Brasil 4,5 0,4 1,9 -0,5
18 África do Sul 1,9 -0,5 1,6 -0,8
19 Austrália 2,1 2,0 1,3 0,8
20 Alemanha 4,4 1,4 1,2 0,8
21 EUA 2,3 2,1 1,1 1,5
22 México 3,4 0,7 1,1 -0,1
23 Canadá 2,7 1,6 0,9 0,6
24 Reino Unido 2,5 2,4 0,9 0,8
25 Japão 6,8 2,2 0,9 0,6
26 França 3,6 1,7 0,5 1,0
27 Espanha 5,0 2,7 0,2 1,0
28 Itália 4,5 1,8 -0,6 1,0
Memória
Mundo 3,3 1,6 2,9 2,2
G7 3,8 1,9 0,7 0,9
AL 4 2,3 1,1 2,8 0,5
Asia Emergente 3,4 4,6 4,7 3,2
Outros Emergentes 3,1 0,7 3,2 1,8

 

A tabela traz alguns resultados interessantes para o período dos governos do PT (2003-2015), destacado em cinza: (i) dentre as 28 economias selecionadas, as quais representam aproximadamente 90% do PIB global, o Brasil ocupou a 17ª posição no ranking de crescimento; (ii) ao se comparar tal desempenho com grupos analíticos, a economia brasileira só não foi pior do que o G7, vale dizer, os países de alta renda mais influentes na ordem global (EUA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França, Itália e Japão); (iii) a variação da renda per capita brasileira (+1,9% a.a.) representou menos da metade da expansão média dos países mais dinâmicos do mundo na Ásia emergente (4,7% a.a.), ficando quase 1 p.p. abaixo da média das quatro maiores economias da América Latina (AL 4 com +2,8% a.a.) , com exceção do próprio Brasil, e aquém da média mundial (+2,9% a.a.) e dos demais emergentes destacados (+3,2% a.a.) – África do Sul, Rússia, Turquia, Polônia e República Tcheca. Ainda assim, os anos da “Era PT” foram melhores do que os dos períodos 1981-2002 (+0,4% a.a.) e 2016-2022 (-0,5% a.a.), mas bem piores do que no auge desenvolvimentista (+4,5% a.a.), entre 1951 e 1980. Aliás, neste momento histórico, o Brasil cresceu mais do que a média global e do que os demais grupos analíticos.

Comparações em dimensões sociais chegam a resultados similares. As matrículas nos três níveis do ensino, a expectativa de vida ao nascer, o desenvolvimento humano, dentre outros, avançaram em linha com o que ocorreu nos países de renda média, no restante da América Latina e em nível mundial. Ou seja, a despeito do sucesso das políticas de inclusão social, especialmente o Bolsa Família, nenhum resultado específico do período 2003-2015 foi significativamente distinto daqueles obtidos em outros países. Em alguns indicadores o Brasil foi um pouco melhor, em outros, um pouco pior. Visto pelo prisma das paixões políticas, pode-se enaltecer o desempenho superior dos governos do PT na área social em comparação aos governos que o antecederam e o sucederam. Poder-se-ia, igualmente, apontar que seus avanços foram tímidos em termos internacionais ou mesmo abaixo dos que seriam necessários para um processo efetivamente transformador da realidade estrutural de exclusão e de desigualdade.

Os governos do PT foram intervencionistas, assim como são todos os governos das modernas economias de mercado. As diferenças reais entre governos têm mais a ver com a qualidade das intervenções e dos resultados alcançados. Neste âmbito, a era PT pode ser considerada superior em relação aos resultados de outros governos brasileiros dos últimos quarenta anos, mas dificilmente se enquadraria como bem-sucedida diante do desempenho de países que têm, de fato, avançado em suas respectivas trajetórias de desenvolvimento. E, mais importante, a era PT não logrou alterar as condições estruturais que aprisionam o Brasil em um quadro de profunda estagnação.

(*) Docente do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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