Opinião
|
2 de novembro de 2022
|
08:15

Reconstrução (por Flavio Fligenspan)

Pronunciamento do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva após resultado das eleições no Hotel Intercontinental. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Pronunciamento do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva após resultado das eleições no Hotel Intercontinental. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Reconstrução passa a ser o tema do momento após a definição do resultado eleitoral com a vitória de Lula. Alívio foi o primeiro sentimento, pois estava em jogo a guinada definitiva do país para o autoritarismo e, pior, o fascismo. Depois do alívio, a tarefa de reconstrução é imensa, e perpassa todos os campos da vida em sociedade, desde o afastamento do clima de ódio e a volta de padrões mínimos de civilidade e respeito até a reorganização das instituições de Estado. Reconstrução é o oposto de desmanche, palavra de ordem do atual Governo. Bolsonaro desmanchou, rapidamente, o que se tinha de organização da vida em sociedade e da estrutura do setor público. Foi um longo pesadelo que está acabando, mas deixou enormes marcas; algumas são feridas abertas com risco de inflamação, outras são cicatrizes para o resto da vida.

A reconstrução pode ser dividida em ações de curto e médio prazo. No curto prazo, praticamente na urgência, Lula terá de renegociar o orçamento para 2023, com rearranjo de prioridades sociais, e terá que incentivar a retomada da economia. Aliás, já na campanha Lula anunciou como uma de suas primeiras medidas a intenção de organizar com os governadores um grande bloco de obras de infraestrutura, para gerar empregos e viabilizar o consumo das famílias de baixa renda. A experiência passada serve de guia; empregos na base da pirâmide e aumentos do valor real do salário mínimo turbinam a economia e melhoram a distribuição de renda. O BNDES terá um papel importante no financiamento destas obras, e o equacionamento das dívidas das famílias deverá fazer a sua parte na revitalização do consumo.

Ainda na urgência, o aumento da fome e da miséria deve forçar a retomada do Bolsa Família ou algo parecido com ele. O eleitoreiro Auxílio Brasil tem um grave erro de concepção, pois não diferencia famílias de tamanhos diferentes, não privilegia crianças pequenas e não exige contrapartidas. Aqui o desafio é enorme, tanto na atualização cadastral, como na pressa que se exige para fazer funcionar um novo programa. Além disso, há um desafio político, com o descontentamento gerado pelo inevitável remanejo dos valores dos benefícios entre famílias atualmente contempladas.

Uma nova âncora fiscal será implementada, provavelmente com base nos ciclos do PIB e sem a rigidez do malfadado “teto de gastos”. Flexibilização deve ser o norte. Em tempos de expansão da economia, com elevação das receitas, se buscam resultados fiscais melhores, e em tempos ruins, se gasta mais para estimular o crescimento. Nos primeiros momentos, há que se negociar com o Congresso um espaço para financiar a retomada, e tempo para “digerir” a desorganização bolsonarista.

A seguir, com um pouco mais de tempo, a negociação com o Congresso deve buscar a aprovação de uma reforma fiscal com dois principais objetivos: (a) a mudança do eixo de arrecadação, com menor taxação dos mais pobres, menor taxação do consumo e aumento da eficiência das empresas – com redução do número de tributos (implementação do IVA) e simplificação da legislação. Os projetos discutidos por anos no Congresso já parecem estar maduros e prontos para serem aprovados, ainda que haja mudanças na composição do parlamento. É certo que emergirão conflitos importantes e muita tensão; afinal, estará se decidindo um novo arranjo de distribuição do ônus de financiamento do Estado, mas este é o melhor momento para a mudança e, se houver êxito, será uma marca do novo Governo.

Outra reforma delicada é a que vai tratar de novas regras de regulação trabalhista. A Reforma de Temer, de 2017, foi muito prejudicial aos trabalhadores e desequilibrou ainda mais a relação capital-trabalho. Flexibilizou demais e aumentou a informalidade, reduzindo o rendimento médio. É claro que há de se adaptar à nova realidade do mercado de trabalho no pós-pandemia, que exige mais maleabilidade e que trouxe novas formas de organizar o trabalho, mas isto é bem diferente da flexibilidade unilateral imposta pela Reforma de 2017, em que os trabalhadores assumiram um ônus desproporcional, com jornadas variáveis, rendimentos incertos e sem cobertura previdenciária.

A mais óbvia de todas as mudanças é a que trará uma nova forma de tratar a questão ambiental. Aqui, o obscurantismo, o oportunismo e a total irresponsabilidade serão mais facilmente substituídos. Há um clamor nacional e internacional por esta mudança, pelo peso do Brasil no cenário mundial e pela necessidade de se adaptar aos novos padrões de exigência dos mercados. Boa parte da perda de apoio ao Governo Bolsonaro veio do descaso com este tema, que influenciou desde pesquisadores de diversas áreas, não só ambientalistas, como empresários conscientes da indústria e da agropecuária – se não conscientes da importância do tema em si, pelo menos preocupados com o futuro dos seus negócios. Foi realmente impressionante, quase inacreditável, o tratamento dado por Bolsonaro ao ambiente, demonstrando, no mínimo, falta de astúcia eleitoral. Não por acaso, uma das primeiras manifestações estrangeiras após a proclamação do resultado eleitoral, foi da Noruega, prometendo retomar o financiamento do Fundo Amazônia, interrompido em 2019 com as primeiras ações de Bolsonaro na área ambiental. Logo a seguir, o Presidente do Egito já convidou Lula para a COP-27, antes mesmo de sua posse, reconhecendo a importância do Brasil “sob nova direção”.

O inacreditável tratamento da questão ambiental mostra bem que Bolsonaro só perdeu porque seu Governo foi de uma incompetência abissal. É preciso ter sorte na vida, até para ser premiado com o adversário certo na hora decisiva. Lula e a sociedade brasileira tiveram muita sorte. O abismo esteve a poucos passos. Bem pertinho. A necessária reversão do desmanche civilizatório e institucional, ou seja, a reconstrução, será árdua e não se resolverá a curto prazo, mas é o único caminho possível.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora