Opinião
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25 de outubro de 2022
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07:28

Descerebrados em ação e uma celebração (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Tive a oportunidade de participar da organização de uma jornada de trabalho que aconteceu há duas semanas no Senado, em Paris. Que o evento ocorra numa instância do poder legislativo francês de tamanha importância se deve ao fato de que a política do atual governo ameaça desmantelar os 470 centros de atendimento infanto-juvenis existentes em todo território. 

Trata-se de uma rede de atendimento de saúde mental já bastante consolidada na França. São 70 anos de experiência de consultas psiquiátrica, psicoterapêutica e de reeducação pedagógica e motora, destinadas a crianças, adolescentes e suas famílias. O acompanhamento terapêutico oferecido nestes centros repousa sobre equipes pluridisciplinares, condição necessária para o tratamento quando se concebe que a causa de qualquer sofrimento de ordem psíquica é multifatorial. O primeiro centro, fundado em 1946, que existe ainda hoje, foi concebido com o intuito de prestar cuidados a uma parte da população traumatizada, também psicologicamente, pela guerra. Na origem desta criação tem-se psicanalistas de renomes como Françoise Dolto, Jean Pontalis, Serge Lebovici, e tantos outros. 

A organização de tal evento não teria sido possível sem o apoio de representantes políticos, mas, sobretudo, sem a tenacidade da senadora Laurence Cohen. Vale lembrar que em 2018 ela encabeçou a redação de um texto coletivo publicado no jornal Libération, intitulado “Lula: une situation alarmante au Brésil”, assinado por deputados europeus de diferentes tendências políticas, no qual denuncia “o simulacro de um processo” que levaria ao aprisonamento do ex-presidente. 

A necessidade de se dirigir aos senadores da República, apontando o perigo que nos espreita, tornou-se uma ação indispensável para tentar frear, pela política, o rolo compressor do Estado tecnocrático macronista. 

O desmantelamento em questão não consiste em fechar tais centros, mas em transformá-los em centros de referência dedicados inteiramente ao diagnóstico; inicialmente, para crianças entre 3 e 6 anos, e ulteriormente entre 7 a 12 anos.  

Onde residiria o problema de uma tal transformação, já que, afinal de contas, qualquer psicoterapeuta minimamente rigoroso exerce sua prática orientado por algumas categorias diagnósticas?

Ora, a novidade desta mutação em andamento consiste em reduzir a complexidade do humano em uma única classificação diagnóstica cujo substrato é inteiramente neurogenético. Assistimos pasmos ao retorno a um monoideísmo que soca a complexidade da condição bio-psico-social de qualquer ser em três letras: TND (transtorno do neurodesenvolvimento). Essa categoria tornou-se epidêmica a partir de 2015 com sua inscrição no DSM 5 (manual de diagnóstico em saúde mental) pois reúne quadros clínicos completamente heterogêneos, tanto do ponto de vista de suas manifestações e de sua evolução como de suas consequências no desenvolvimento e na vida social de uma criança. 

Na medida em que tudo está contido nessas três letras, o tempo do diagnóstico é objetivado na falha do desenvolvimento neuronal sem nenhuma expressão no campo da linguagem; por conseguinte, elas estipulam uma forma protocolar de terapêutica, ou seja, a mesma para todos, visto que a etiologia do sofrimento passa a ser também idêntica para todos. Quando tudo torna-se neurogenético não precisamos mais pensar nos fatores sociais e culturais, no uso da língua, nem há mais necessidade de abordar a história familiar, as dinâmicas relacionais, os traumatismos, as separações contingentes da vida ou os dramas existenciais. Os fantasmas da vida imaginária constitutivos do mundo criativo no desenvolvimento de uma criança, nesta lógica, tornam-se simples elucubrações sem importância. Quando a concepção do sofrimento é acaparada por um velho fantasma frenológico, o sujeito que padece é dispensado daquilo que o humaniza, ou seja, de sua fala. 

Se a ideologia que o TND promove ganha cada vez mais terreno graças a instâncias governamentais intervencionistas, desejo aqui, nos antípodas desta lógica descerebrada, celebrar e homenagear o psicanalista francês, Charles Melman, que perdemos na semana passada. Desde a metade dos anos 50, inscrito na tradição psiquiátrica humanista francesa, Melman nos deixa um imenso legado psicanalítico precioso para pensar e contrapor o frenesi deste monoideísmo que nos espreita.   

(*) Psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: alfredo.gil@wanadoo.fr  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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