Opinião
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24 de agosto de 2022
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08:08

Uma nova recessão global? (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Vários choques atingiram a economia mundial, que já estava enfraquecida pela pandemia. (Wikimedia cc 2.0)
Vários choques atingiram a economia mundial, que já estava enfraquecida pela pandemia. (Wikimedia cc 2.0)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

A economia global ruma para uma nova recessão? Esta questão voltou à ordem do dia. O sinal de alerta soou mais forte com a edição de julho do Panorama da Economia Global, onde os técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) revisaram para baixo as projeções para a evolução da renda mundial: de +3,6% (em abril) para +3,2% (em julho). Isso porquê: “Vários choques atingiram a economia mundial, que já estava enfraquecida pela pandemia: a inflação acima do esperado em todo o mundo – especialmente nos Estados Unidos e nas principais economias europeias –, o que desencadeou condições financeiras mais restritivas; a desaceleração na China, também em patamares acima do esperado, em decorrência dos novos surtos da Covdi-19 e os subsequentes lockdowns; e outras repercussões negativas da guerra na Ucrânia.”. 

O Banco Mundial já havia alterado a sua projeção para o PIB de 2022 de +4,1% (em janeiro) para +2,9% (em junho). Outras instituições oficiais, como a OCDE, e o BIS fizeram o mesmo [1]. Bancos, gestores de fundos de investimento e consultorias especializadas trabalham com estimativas convergentes: ao redor de +3% de variação da renda do corrente ano, o que equivale à quase metade do ritmo forte de retomada observado em 2021. Ninguém projeta níveis muito mais robustos para 2023 e 2024. Os indicadores antecedentes estimados em julho e agosto pelo Conference Board sugerem um quadro onde predominam as tendências de retração. O mesmo vale para as estimativas da OCDE compiladas pela Yardeni Research.

Definir ou antecipar uma recessão é um desafio complexo, posto que os dados econômicos que permitem avaliar tal processo só ficam disponíveis depois que o mesmo já se consolidou (ou não). Além das informações dos sistemas de contas nacionais trimestrais que são, por construção, defasados no tempo, os indicadores mensais sobre o nível de atividade, o emprego, as vendas no varejo, as expectativas etc., nem sempre se comportam de forma convergente. Em determinado momento, alguns deles podem sugerir a possibilidade de contração no nível de atividades, enquanto outros apontam na direção contrária. 

Por estas razões, o próprio conceito de recessão envolve um olhar ex-post. Como nos lembram Claessens e Kose o mais utilizado é aquele desenvolvido pelo Comitê de Datação de Ciclos do National Bureau of Economic Research (NBER), segundo o qual uma recessão se expressa através de “ …. um declínio significativo na atividade econômica, que se espalha por toda a economia e dura mais do que alguns meses”. No caso da economia global isso é ainda mais difícil, pois são escassos os dados mensais ou mesmo trimestrais abrangentes o suficiente para que se possa replicar o método do NBER, o qual envolve um olhar sobre vários indicadores, principalmente: a renda real das famílias, descontadas as transferências; o emprego; os gastos das famílias em consumo; vendas no varejo e emprego industrial. 

A tabela abaixo fornece os dados trimestrais de variação do PIB para as economias mais relevantes internacionalmente. Verifica-se que após a forte contração associada ao surto inicial da pandemia da Covid-19, as economias selecionadas iniciaram um processo de recuperação. Este, por sua vez, foi perdendo intensidade, particularmente no corrente ano. 

 

 

A imprensa financeira e alguns analistas de mercado consideram que uma economia está em “recessão técnica” quando há duas variações negativas consecutivas do PIB trimestral. Se este fosse o caso e com os dados disponíveis no momento, somente os EUA poderiam se enquadrar nesta métrica. Todavia, não é tão simples assim definir uma recessão. Há indicadores da própria economia estadunidense que apontam no sentido contrário, particularmente quanto ao comportamento do mercado de trabalho. O máximo que a tabela anterior nos permite inferir é que as principais economias do mundo estão em processo de desaceleração ou, na melhor das hipóteses, com ritmos modestos de expansão. Em alguns casos, há indícios preocupantes de perda súbita e intensa de dinamismo, como na China, nos EUA e no Reino Unido. Da mesma forma, não há projeções atuais que indiquem uma queda na renda per capita global entre 2022 e 2024.

Uma Nova Recessão no Futuro Próximo?

Dentre os estudos mais abrangentes sobre recessões globais, cabe destacar o de Kose e coautores, desenvolvido no âmbito do Banco Mundial. Para eles é possível indicar tal fenômeno como sendo “… uma contração no PIB real global per capita acompanhada por um amplo declínio em várias outras medidas da atividade global.”. Nesta perspectiva, os anos de 2009 e 2020 enquadram-se como “recessões globais”, com quedas na taxa de variação do PIB per capita de -2,5% e de -4,3%, respectivamente.

O estudo de Kose e coautores destaca que para se melhor compreender a dinâmica recente das expansões e das contrações deve-se considerar que a estrutura da economia global se alterou nas últimas décadas no sentido da maior abertura econômica e da maior importância dos países emergentes e em desenvolvimento. Entre as décadas de 1950 e 1990, 80% da renda mundial e 75% do seu crescimento eram provenientes dos países avançados. Atualmente, tais participações são de, respectivamente, 60% e 40%, considerando-se valores a preços de mercado.

O corolário desta nova realidade é a maior participação relativa das demais economias, especialmente os grandes países emergentes. As economias também se tornaram mais abertas e interdependentes, com a relação exportações de bens e serviços sobre a renda, que é o coeficiente de abertura comercial, passando de 20% (1950s) para 55% (2010s); e com a relação ativos e passivos financeiros com respeito à renda avançando de 50% (1970s) para 400% (2010s). Portanto, para avaliar os rumos da economia global não basta olhar para os EUA, a Europa e o Japão, como no passado; mas para China, Índia e outros emergentes de maior porte, bem como para as suas especificidades.

Desde os anos 1970 não se vivia uma conjuntura marcada por forte desaceleração no nível de atividades, combinada com pressões altistas na inflação. Os preços finais ao consumidor aproximam-se de (ou ultrapassaram) variações anualizadas de dois dígitos nos Estados Unidos (EUA), Europa e várias economias de alta renda e países emergentes e em desenvolvimento. A guerra na Ucrânia colocou o mundo em alerta, tanto pela tragédia humanitária no palco dos confrontos, quanto pelos seus efeitos sobre os preços da energia e dos cereais. Os mercados financeiros acusaram o golpe. A S&P 500 caiu 21% no primeiro semestre de 2002 e a Nasdaq perdeu 32% do seu valor. Outros indicadores e segmentos passaram por ajustes nesta mesma direção.

A despeito de tais perspectivas, no momento não se projeta um “apocalipse” e muitos investidores voltaram às compras de ativos de risco, o que permitiu reduzir as perdas acumuladas no ano. Os mais otimistas já contam com a perspectiva de um “pouso suave”, com a inflação em recuo e menor aperto da política monetária. Outros seguem céticos. Tal dicotomia se explicita na mais recente pesquisa do Bank of America (BofA) sobre as expectativas de cerca de 300 investidores, que administram US$ 826 bilhões em ativos e se localizam em diversos países. A mesma foi realizada entre os dias 5 e 11 de agosto e seus resultados apontam que 58% dos entrevistados acreditam que a economia global entrará em recessão nos próximos doze meses. É o maior indicador desde maio de 2020, quando dos desdobramentos da primeira onda da pandemia da Covid-19. Se há a perspectiva negativa quanto ao nível de atividades, os mesmos entrevistados projetam um cenário melhor para a inflação e as taxas de juros nos próximos trimestres. Como sugeriu a revista The Economist, o “esquecimento é doce”.

Ainda não está claro que a economia global adentra o caminho de uma nova recessão. O que se pode afirmar é que os riscos neste sentido se ampliaram consideravelmente, particularmente por conta dos conflitos geopolíticos [2]. Os efeitos potencialmente disruptivos da inflação mais alta e dos juros em elevação não podem ser ignorados [3], bem como as dificuldades dos líderes chineses em sustentar ritmos mais robustos de crescimento da renda com manutenção da estabilidade social e financeira. Mesmo sem uma recessão, as economias sistemicamente mais importantes não estão em um bom estado e as perspectivas de médio prazo seguem preocupantes.

Notas

[1] A OCDE resumiu da seguinte forma o ambiente econômico: “The world is paying a heavy price for Russia’s war in Ukraine. It is a humanitarian disaster, killing thousands and forcing millions from their homes. The war has also triggered a cost-of-living crisis, affecting people worldwide. When coupled with China’s zero-COVID policy, the war has set the global economy on a course of slower growth and rising inflation – a situation not seen since the 1970s. Rising inflation, largely driven by steep increases in the price of energy and food, is causing hardship for low-income people and raising serious food security risks in the world’s poorest economies.”

[2] Para o FMI: “A serious risk to the medium-term outlook is that the war in Ukraine will contribute to fragmentation of the world economy into geopolitical blocs with distinct technology standards, cross-border payment systems, and reserve currencies. So far, there is limited evidence of reshoring, and global trade has been more resilient than expected since the start of the pandemic. Fragmentation may also diminish the effectiveness of multilateral cooperation to address climate change, with the further risk that the current food crisis could become the norm.” (IMF – WEO July 2022)

[3] A influente PIMCO sugere que: “We see an elevated risk of recession over the next two years, reflecting greater potential for geopolitical tumult, stubbornly high inflation that reduces households’ real disposable income, and central banks’ intense focus on fighting inflation first, which raises the risk of financial accidents on top of the sharp tightening of financial conditions already seen.”

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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