Opinião
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31 de julho de 2022
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09:36

Crônicas de um atravessador de pandemia (por Cassio Machado)

Cassio Machado, autor de 'Crônicas de um Atravessador de Pandemia' (Divulgação)
Cassio Machado, autor de 'Crônicas de um Atravessador de Pandemia' (Divulgação)

Cassio Machado (*)

O som da voz se esgueirava entre as frestas da porta fechada e atingiam meus ouvidos, era possível escutá-la ministrando suas aulas para dezenas de pequenas pessoas no cômodo ao lado. Na minha frente, sobre a mesa, uma tela que emitia a luz branca de uma página em branco, que, de longe, me recordava a incumbência de escrever. O que dizem sobre procrastinação é verdade, e o que dizem sobre nossa dificuldade em seguirmos tarefas que nos são impostas também.

As linhas que ainda não existiam aguardavam as palavras que descreveriam um projeto, com seus objetivos, suas metodologias, seu cronograma e orçamento tabelado, assim como todas as referências adequadamente catalogadas. Contudo, o travessão que pulsava remetia à sala de aula improvisada, aos encontros postergados, ao medo causticante e à saudade inaudita. Vivíamos o início de uma pandemia sem precedentes e sem perspectivas, quando projetar ou traçar cronogramas em dias sem horas e semanas sem domingos tomava traços de ficção. Por fim, escrevi, mas não o que deveria.

Ser profissional de saúde e trabalhar em um hospital público de uma capital alimentou a crença de um pretenso lugar de fala, mesmo que por um breve momento. Mas a dureza de uma vida pandêmica é transversal, e não apenas porque os protocolos de segurança invadem nossos lares, ou porque mais do que nunca não queremos encontrar amigos e familiares no local de trabalho, mas porque somos um. O filho é psicólogo, o companheiro também é professor, e o profissional também tem seus medos. O que move a todos é o indescritível.

Assim, talvez o escrever sobre tudo pode ter me salvo, até o momento. Escrever sobre o cotidiano no trabalho e os cuidados domésticos, a digitalização dos encontros e a retomada dos abraços, sobre as mortes, as vacinas e os sintomas, o medo e as angústias, mas também sobre o vendedor, a senhora que varre a calçada e o entregador, sobre a notícia veiculada na televisão e a compartilhada no aplicativo de mensagens, sobre eu, ela, nós, vocês e os outros.

Em maio de 2022, as linhas que povoavam as nuvens foram condensadas em livro, Crônicas de um Atravessador de Pandemia. Este livro traz reflexões sobre trabalho, organização domiciliar, discussões familiares, isolamento, distância e receios, mas também conquistas, vitórias, gargalhadas e alegrias. Dessa forma, as lágrimas e as risadas, que por muito tempo povoaram o apartamento 429, encontram morada em outros domicílios. Com mais de 90 crônicas publicadas de forma independente, a obra encontra-se disponível em plataformas de venda online ou em contato diretamente com o autor.

Quando pensava que era o fim, descobri o início. O livro acabado, publicado e lançado ao mundo deixa de ser meu e almeja descrever um tempo nosso, apresentando uma perspectiva para somar às já postas e as por virem.

(*) Psicólogo, atua no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) (cassioandrademachado@gmail.com)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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