Opinião
|
10 de julho de 2022
|
07:57

Golpe – Capítulo III (por Céli Pinto)

Processo já tinha maioria formada desde fevereiro, mas processo foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Processo já tinha maioria formada desde fevereiro, mas processo foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Céli Pinto (*)

Estamos todos anestesiados, ou achamos melhor, neste momento, brincar de faz de conta? Há três meses das eleições gerais no país, marcadas para 2 de outubro, há em paralelo dois Brasis: um acredita que o país ainda  é uma democracia,  luta para ganhar eleições e faz uma campanha política corriqueira, enfrentando as costumeiras dificuldades de  formar blocos, fazer alianças, mesmo que sejam atitudes às vezes suicidas, face ao momento em que vivemos, e o outro está ocupado tramando o terceiro capítulo do golpe.

Para as parcelas progressistas do eleitorado, Lula é a garantia de que o país voltará para níveis civilizados, que permitam reorganizar o governo e dar uma vida razoável para o maior número de brasileiros possível. Entretanto, é preciso ter presente que a grande vantagem do ex-presidente nas pesquisas atuais não assegura sua vitória em outubro. A razão mais forte para isto é que, enquanto a esquerda vive uma espécie de magia digna de Alice nos País das Maravilhas, o outro Brasil está muito atento ao que acontece neste reino e, em plena atividade, busca construir o terceiro capítulo do golpe.

Discutir se os militares sairão às ruas ou não para promover um golpe é inócuo.  O Mourão de hoje (não o Olímpio) é candidato a senador pelo Rio Grande do Sul e tem chances de vitória, caso as eleições aconteçam, já que a esquerda e a centro-esquerda parecem não estar interessadas em vitória neste canto do país. Em 1964, os militares precisavam chegar ao poder; hoje já fazem parte dele.

O primeiro capítulo  do golpe é por demais conhecido, mas vale lembrar de alguns episódios: começou com a falsa não aceitação dos resultados das eleições de 2014  pelo candidato derrotado à presidência da República, atual deputado Aécio Neves que,  posteriormente,  em entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, em 20 de maio de 2017,  disse ter entrado com a representação no TSE apenas para “torrar o saco do PT” ( palavras textuais). Após veio o impeachment da Presidenta Dilma, arquitetado  pelo centrão do Congresso Nacional , com apoio das lideranças do PSDB  e com a anuência, quase indecente, do STF que, à época, não manifestava as preocupações éticas e legais que parece ter hoje. Por fim o lavajatismo, dirigido por um juiz de primeira instância com poucas luzes e muita ambição, secundado por procuradores com a mesma falta de qualidades, deu a facada final: prendeu Luiz Inácio Lula da Silva,  o pré-candidato à presidência da república que liderava todas as pesquisas de opinião. 

O primeiro capítulo do golpe foi dado com maestria e com apenas um acidente de percurso: o PSDB não se deu conta de que estava afundando junto com o desmonte que havia patrocinado. Ficou com menos de 5% dos votos nas eleições presidenciais e proporcionou as condições ótimas para que um ex-tenente, deputado há 28 anos sem qualquer expressão na Câmara, conhecido por sua falta de decoro, sua ignorância, sua vulgaridade, com atuação parlamentar pífia e desprezado até pelo chamado baixo clero, se tornasse Presidente da República. Esta eleição inaugurou o segundo capítulo do golpe e a progressiva destruição de todos os ganhos que o país teve desde a redemocratização, concretizados na Constituição de 1988.

Este indivíduo que governa o Brasil há três anos e meio não está sozinho. Cercou-se de militares e entregou o orçamento da união ao Congresso Nacional. Obedece a uma cartilha rigorosa em seu (des)governo de destruição e enfraquecimento das instituições de estado, cuja função deu suporte  a uma razoabilidade política e permitiu  uma democracia, mesmo que de baixa intensidade, por mais de 20 anos. A lista  das ações do desgoverno é cansativa: desmantelou a independência da Polícia Federal; trouxe a família para as reuniões oficiais, cercou-se de assessores de passado duvidoso, na área da Saúde, Educação, Cultura, Direitos Humanos e Relações Exteriores,  Meio Ambiente escolheu cuidadosamente ministros sem competência, empenhados em destruir seus próprios ministérios, alguns verdadeiramente mal-intencionados, outros fanáticos religiosos, outros apenas  “felizes” por terem atingido posições impensáveis.  De repente, gente que tinha a ambição de um dia se tornar síndico do condomínio tornou-se ministro de Estado.

 O Terceiro Capítulo,  do golpe, pois, está sendo arquitetado por quem governa, o que já ocorreu em alguns países em que a extrema-direita chegou ao poder por eleições, como é o caso da Hungria e da Turquia. Mesmo assim, as peculiaridades brasileiras são muitas. O atual presidente da república, seu grupo mais próximo e os militares que o circundam desqualificam o processo eleitoral, há mais de dois anos, diuturnamente. Para fazê-lo sem deslegitimar sua própria eleição, o ex-tenente, Comandante em Chefe, repete ad nauseam que as eleições que o tornaram vitorioso foram fraudadas porque, na verdade, ele teria vencido no primeiro turno. 

Ao se aproximarem as eleições de 2022, com baixos índices nas pesquisas eleitorais, a figura presidencial tem dito, com todas as letras, que só aceitará o resultado eleitoral se for vitorioso. Para viabilizar seu intento, parece investir em duas saídas: a indecente PEC do Estado de  Emergência, votada por um parlamento venal, que destrói princípios básicos do regramento eleitoral para distribuir dinheiro para as camadas mais pobres da população e assim angariar os votos até agora  nas mãos de Lula, em acordo com o chamado centrão, na verdade uma direita completamente amoral. Se der certo, toda a corja sairá ganhando, e muito. Mas, se em agosto, inicio de setembro, a diabrura não funcionar, por que não outra PEC, com base na precariedade do país devido ao Estado de Emergência, adiando as eleições por dois anos, para emparelhar com as eleições municipais?  Alguém, em sã consciência, pensa que o parlamento brasileiro se revoltará ao ter a garantia de mais dois anos de mandato?  

Neste pandemônio, despontam dois atores importantes: o TSE e o STF. Ambos os tribunais têm tomado medidas para serem para-raios na tempestade e frear o descontrole total do processo eleitoral que se anuncia. Sempre tão parcimoniosos, aparecem agora como os cavaleiros da esperança, para salvar os resquícios de democracia deste triste país.  A posição desses tribunais é muito particular. O que fazer, entretanto, com o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal se o terceiro capítulo do golpe avançar. Fechá-los? Quem o faria? A separação dos poderes é uma das cláusulas pétreas da Constituição brasileira, não pode ser matéria de Emenda Constitucional, como indica explicitamente seu artigo 60, parágrafo 4º. A Constituição seria revogada? Parece pouco provável.

O Capítulo III do Golpe tem simpatizantes poderosos, mas empecilhos também bastante fortes. Bolsonaro por várias vezes ameaçou não cumprir atos do poder judiciário, especificamente, das altas cortes e não se ouviu, fora do próprio judiciário, reações robustas. As ameaças passaram como bravatas. Para enfrentar as altas cortes e fechá-las, parece que haverá necessidade de um golpe ao velho estilo, com tanques fumegantes nas ruas e prisões, o que também é  muito pouco provável.  Talvez a manutenção do Estado de Emergência, que não está nem na constituição, mas na lei eleitoral, possa ser uma saída golpista menos desgastante. Neste caso, sobraria muito pouco para os ministros das altas cortes fazerem.

Mas as democracias, mesmo quando feridas profundamente, podem surpreender, podem entusiasmar um povo enganado com falsas promessas. Mesmo as democracias mais pobres, ou as menos consolidadas, ainda podem entusiasmar, plantar na cabeça de cada eleitor e eleitora das classes populares  a  esperança de que todos merecem uma vida digna, justa, sem violência, sem preconceito, com trabalho, com lazer. A democracia, mesmo violentada, pode fazer com que o povo não tenha medo de ser feliz. E isto talvez seja a única vacina realmente eficiente para barrar os golpistas. Alice estava certa, há um mundo mágico que, de tão mágico, torna-se real. Nunca deixar de acreditar nele e lutar por ele é preciso. Hoje mais do que nunca. 

A mágica na política, entretanto, significa temperança, altivez, compreensão profunda das ameaças. É preciso entender com seriedade os perigos, não subestimar adversários nem superestimar lideranças, escondendo-se das verdades e deixando-se enganar por entusiasmos juvenis.  A democracia brasileira está agonizando. Tenhamos todos e todas responsabilidade. Ela resistirá a esta sucessão de golpes, que a tornam cada vez mais frágil? Quem viver verá.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora