Opinião
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3 de maio de 2022
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07:36

A língua de Ariane Mnouchkine, eu ouvi (Coluna da APPOA)

Ariane Mnouchkine,  diretora do Théâtre du Soleil (Foto:  Rodrigo Campusano / CNCA)
Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil (Foto: Rodrigo Campusano / CNCA)

Alfredo Gil (*)

Não sei por que razão o teatro sempre esteve no segundo ranque das minhas fruições culturais, artísticas. Apesar disso, não é difícil saber ou ter ouvido falar sobre o lugar singular que ocupa, no mundo cênico, a troupe do Théâtre du Soleil, fundado em 1964 e dirigido pela incansável Ariane Mnouchkine. Desde então, ele manteve-se idêntico, ou seja, cada criação é única e estupenda, e sempre política.

Uma amiga, conhecendo há anos seu trabalho, me levou para assistir, na semana passada, a sua última realização: L’Île d’Or (A Ilha de Ouro) .  

Ir ao Théâtre du Soleil é uma experiência estética que começa antes que as cortinas da cena se abram. Antes mesmo de entrarmos na sala do espetáculo. Somos progressivamente absorvidos pelos diferentes espaços contendo os elementos da trama que nos aguarda; L’Île d’Or nos embarca para o Japão. O público é recebido na grande sala do teatro – antigo depósito de pólvora do exército até o final da Segunda Guerra – com cores, imagens e decorações nipônicas, além dos sabores da gastronomia japonesa que podemos apreciar antes ou após as três horas de espetáculo. Situado em meio à floresta de Vincennes, o Théâtre du Soleil é um conceito, político e comunitário. Compreende-se rapidamente que não estamos em um teatro de boulevard, quando se é acolhido, há 50 anos, pela própria Ariana Mnouchkine, 83 anos, resplandecente, a quem entregamos o ticket e irresistivelmente declaramos nossa admiração. 

Nesta Île d’Or, Mnouchkine e sua troupe cosmopolita inventa uma ilha, um lugar de sonho, loucura e realidade. A construção dramatúrgica, a força da música, o jogo de luzes, a distribuição dos atores nos diferentes espaços do teatro nos levam a vacilar entre estes três registros. Uma ilha de Babel que acolhe grupos de teatro do mundo inteiro na qual cada um conta sua história, em chinês, japonês, hindu, persa do Afeganistão, árabe, hebraico, russo, português do Brasil. Uma ilha situada em mar japonês – Japão, berço da aprendizagem do teatro de Mnouchkine. 

Mas o espectador é imediatamente tomado pela língua de todos, que é o francês. Em meio às marionetes do Bunraku, ao gestual simbólico do nô, à arte do taiko e seus tambores, às mímicas do kyōgen, os artistas contam a história desta ilha em um francês subvertido, “à la japonaise”, cuja sintaxe exige a paciência do público para conhecer o sujeito e sua ação, o que provoca um estranhamento que se transforma, progressivamente, em prazer da língua. “Le temps, ici, toujours changeant est” (O tempo, aqui, sempre mudando está ).

A língua francesa reinventada no teatro, reestruturada, nos evoca primeiramente os alexandrinos: língua da poesia, esta composição de doze sílabas é o verso cardinal francês, cujas regras foram enunciadas em L’Art poétique, de Nicolas Boileau no século XVII. Daí a beleza de um Molière: “On ne meurt qu’une fois, et c’est pour si longtemps ! », Racine : « Je ne l’ai point encore embrassé d’aujourd’hui. », ou Hugo : « Je vis un ange blanc qui passait sur ma tête », e um Rostand : « Au milieu la césure, entre les hémistiches ! ».

Ora, o fraseado inventado por Mnouchkine nos pede uma atenção redobrada. Ele suscita expectativa, suspende a compreensão do ouvinte para captar o sentido do que é dito: “Contente de vous retrouver j’étais” (Contente de te encontrar eu estava); o agente quando posto no final, nos relança para o início. 

Podemos especular que este deslocamento do sujeito no emprego da palavra, modificando a noção do tempo no trabalho de compreensão, deve-se ao fato de que o projeto L’Île d’Or foi em parte concebido durante o confinamento da crise sanitária. Compreender o enclausuramento e o impensável da crise também levou Mnouchkine e sua troupe a convocar líderes que laboram para que a língua esteja a serviço do ódio, de uma realidade sem sonho nem poesia. Assiste-se ao desembarque, na Ilha de Ouro, direta ou indiretamente, do presidente chinês e do brasileiro, de Trump e de outros ativistas do eixo do mal.

A língua de Île d’Or, que é o francês e não é, reposiciona o sujeito e sua ação na História e abre a possibilidade do uso da palavra numa relação gramatical em que, respeitando as regras do viver juntos, se inova poéticamente a arte da con-versa.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: alfredo.gil@wanadoo.fr

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