Opinião
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14 de fevereiro de 2021
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11:34

Tirem as patas dos jovens (por Luiz Marques)

Por
Sul 21
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Tirem as patas dos jovens (por Luiz Marques)
Tirem as patas dos jovens (por Luiz Marques)
Foto: Luiza Castro/Sul21

Luiz Marques (*)

“Nem rir, nem lamentar-se, nem odiar mas compreender”.
Baruch Spinoza

Na chamada “segunda onda” da pandemia no mundo, desperta atenção o comportamento da juventude em diferentes geografias. Comenta-se que desrespeitam as normas sanitárias (máscaras e isolamento social) e promovem aglomerações em parques, praias, bares e festas que reuniriam multidões com uma assustadora proximidade física. Tudo acima corresponde aos fatos, e é lamentável. No entanto, os fatos não falam por si próprios, exigem visão mais acurada e ampla. É o que este texto pretende apurar.

Alguns analistas atribuem a eventos massivos da juventa a propagação do coronavírus, que, na sequência, alcançaria os desavisados. Outros, com sofisticado amparo na literatura pós-moderna, vêem na desobediência uma vitória do “hedonismo”, do “individualismo” e do “egoísmo”, os quais impediriam a formação de uma consciência empática fora (na verdade, sequer dentro) dos limites das tribos de jovens. Em qualquer livro de Zigmunt Bauman et alli é possível achar argumentos nessa direção. As justificativas acalmam a angústia frente ao nonsense, que grassa nos pontos cardeais, com a vantagem de apresentar um culpado pela proliferação do mal invisível e letal.

O juízo é reverberado nos noticiários com apoio no pensamento conservador, que substituiu as “classes perigosas”, isto é, os trabalhadores(as) do século 19 pelas faixas etárias juvenis do séc. 21. O problema da formulação está em ignorar as variáveis que contextualizariam por quem os sinos dobram, no corrente.

Melhor, no caso, adotar a postura de Pierre Bourdieu que, frente às escolas filosóficas rígidas, propõe romper com o “monoteísmo metodológico”, a fim de apreender toda a complexidade da realidade. A mesma comporta múltiplas abordagens, política, sociológica, antropológica, psicanalítica etc. Na lista incorpora-se o escaninho administrativo, que tem a ver com a inoperância e a falta de liderança dos órgãos estatais. Fazer profissão de fé em apenas uma perspectiva metodológica implicaria na refutação, a priori, de outros procedimentos cognitivos.

A pergunta é: o que as gerações anteriores legaram aos descendentes, em nosso tempo. Resposta: uma herança capaz de provocar rubor.

Na década de 80, a economia brasileira representava 3,2% do Produto Interno Bruto mundial, agora equivale a menos 2% do PIB. “Quase nada resta de nossa indústria de máquinas, de construção pesada, petroquímica ou naval”, sublinha Márcio Pochman, ex-presidente do Instituto Perseu Abramo. Ao passo que os empregos foram trocados pelo trabalho precário e/ou esporádico.

Se, a tanto, somar-se a crise econômica em curso, com desemprego na beira dos 15% da população ativa e com a informalidade em disparada, é fácil concluir que o presente não dialoga com o futuro, tornado uma ideia demasiada abstrata e volátil. Uma lástima para nós, brasileiros(as), que “somos como Robinsons… sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou”, nas palavras de Lima Barreto.

Sem citar que a perda de importância na economia, do eterno país misterioso, caminhou junto com a perda política brutal em âmbito internacional, na Era Bolsonaro. O Brasil fez-se sinônimo de pária, ninguém quer por perto. Reflita o leitor sobre a última vez que viu uma foto do presidente miliciano com um chefe de Estado…

O G-8, o Brics e o projeto de integração latino-americana esvaíram-se com o retrocesso civilizacional bolsonarista, cuja opção reconduziu a nação aos trilhos da vassalagem colonialista, sob domínio dos Estados Unidos. Celso Amorim, ex-chanceler durante a administração de Lula, tem folgados motivos para afirmar que “a diplomacia brasileira em voga é irracional”. Irracional porque sem utilidade para o sonho da pátria amada. A preferência recaiu em abrir mão do protagonismo para engrossar o bestialógico político.

Acrescente-se à moldura o corte de bolsas de estudos, em vários patamares na escala acadêmica e científica, para compreender o cruel desamparo da juventude sob o desgoverno protofascista. Alunos, da graduação ao doutorado, tiveram de suspender as atividades universitárias por conta da irracionalidade da medida restritiva, mais uma contra o conhecimento e o pensamento crítico.

Não adiantaram os protestos veementes de cientistas e pesquisadores, do Oiapoque ao Chui, através de entidades a exemplo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciência (ABC).

Bertold Brecht, en passant, tem uma metáfora que se adapta, ilustrativamente, às reações raivosas e virulentas (sem trocadilho) contra as transgressões dos grupos etários tidos por ameaçadores. Escreveu ele: “Do rio que tudo arrasta diz-se que as águas são violentas. Mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem.” A etariedade criminalizada, de maneira superficial e agressiva, corresponde à alegoria brechtiana, à perfeição dans ce cas-là.

Os intérpretes do Maio de 1968, em Paris, costumavam enfatizar que a estrondosa e surpreendente mobilização estudantil foi uma tempestade no paraíso. Le pays était développé, os franceses não experimentavam uma crise econômica, gozavam de pleno emprego, o temor subjetivo dos estudantes era perder postos de trabalho para os robôs, no futuro. Sofriam, pois, por antecipação. O ambiente externo era marcado por duas fortes vertentes culturais:

a) Cientificista, influenciada pela introdução da robótica nas fábricas nos anos 50, que ganhou as páginas dos livros de ficção e as telas da TV em expedições espaciais como na série Lost in Space (1965), materializada na viagem da espaçonave Apolo 11, ao alunissar o módulo na Lua (1969) e;

b) Politicista, fruto da pressão exercida no imaginário social pela Revolução Chinesa (1949), a Revolução Cubana (1959) e a Guerra do Vietnan nos anos 60, que contribuíram para a politização dos jovens. Em 1970, John Lennon decretaria o fim da heróica geração: “O sonho acabou”, ouviu-se em seu primeiro disco solo posterior aos Beatles. No Brasil, a profecia confirmou-se no regime ditatorial sob o tacão (1969-1974) do Gal. Emilio Garrastazu Médici. Vade retro dictator.

O entorno histórico -cultural explica os jovens sessentistas terem debruçado-se sobre a utopia de uma sociedade pós-capitalista (politizados que estavam). Ao contrário, os jovens ora deixam-se capturar pela direita e inclusive pela extrema-direita (despolitizados que estão), como na Holanda ou nos EUA. Consequência rediviva de décadas de hegemonia do ideário neoliberal.

As transgressões agora são de outro tipo. Efeito das muitas contradições das confusas autoridades, no resguardo da “questão de ordem pública”. O país mais emblemático da desestruturação da rotina, suscitada por providências tão contraditórias dos altos mandatários, foi Portugal. No início da pandemia agiu com sensatez, impactado com as mortes na vizinhança, en France e en Espana. Quando afrouxou as medidas sanitárias cautelares tropeçou em um macabro paroxismo. Parece que a galera lusitana caiu numa espécie de realismo italiano de Ettore Scola (Brutti, Sporchie e Cattivi).

Do mente-desmente que desenha o perfil da Presidência de Bolsonaro é dispensável discorrer, já lustrou uma fétida notoriedade além-fronteiras. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, sem critérios, discutiu-se reabrir os estádios de futebol, embora a “cidade maravilhosa” concentre um número recorde de óbitos diários por covid-19 em todo território nacional. No Rio Grande do Sul, o governo estadual anunciou para breve a volta às aulas presenciais nas escolas e universidades, embora nenhum levantamento técnico ampare com cuidados sanitários a intenção. Trata-se do desejo de “parecer normal” que subjaz às práticas negacionistas.

Levantamentos técnicos eram viáveis, não obstante. 6,8 milhões de testes foram comprados em junho pelo governo central. Esses exames RT-PCR, para diagnóstico do novo vírus, com amostras colhidas em cotonetes nas regiões nasal e faríngea (atrás do nariz e da boca), estocados num armazém em Guarulhos, até dezembro não tinham sido distribuídos. O prazo de validade do lote expirava em janeiro. Os raros materiais levados aos estados e municípios estavam com kits incompletos, sem reagentes para extração do RNA.

Por falhas de planejamento (ou pior, cruzes!), um total de R$ 1 bilhão “da viúva” foram desperdiçados. O castigo não tardou. No momento, o Ministério da Saúde requisita ao Ministério da Economia a quantia suplementar de R$ 5,2 bilhões para ampliar os leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e garantir atendimento ao aumento de pacientes contaminados.

Evidentemente, iniciativas erráticas passam ao largo do bom senso. Porém, rente à impaciência dos jovens que, cotidianamente, ouvem mensagens conflitantes, às vezes de um mesmo personagem. Não encetam as incontornáveis campanhas de testes, enquanto escoltam à forca a juventude. Esta, como sabia Aristoteles, defende-se com o riso:”Amiga que é da alegria, adora zombar (insultar com graça, LM) os demais”.

O aprendizado político-moral sobre os consensos democráticos básicos de solidariedade social, pelos educandos, dá-se nos atos concretos dos supostos educadores, mais que pelas portarias burocráticas e pelas intervenções policiais. A exemplaridade é o mestre das ações daqueles que estão no degrau abaixo da hierarquia geracional. A desobediência da juvenilidade funciona como sinal de alerta a quem não soube cuidar das pessoas sob sua jurisdição. E a coisa continua assim.

José Sócrates, ex-primeiro ministro português (2005-2011), tem razão ao pregar: “A democracia não prescinde da inclusão social, não prescinde dos direitos individuais, não prescinde das limitações ao poder de Estado, não prescinde da Constituição.” Isso é correto e sobre isso não há que transigir.

“Quando essa negociação foi feita, sabemos muito bem como acabou”, acresce. Vide a falecida República de Weimar, democracia representativa semipresidencial criada após a  I Guerra, em 1919, que durou até o início do regime nazista, em 1933. Enfim, a democracia “não pode deixar-se torturar”, parodiando a expressão de Fernando Haddad.

Por último, valeria destacar a tarefa sempre adiada pelos poderes constituídos (Executivo, Parlamento, Judiciário) de socializar direitos para o conjunto do povo. Seria ingenuidade, contudo, julgar que a construção da justiça social viria por intermédio apenas institucional. Como se lacrimosos apelos supraclassistas pudessem sensibilizar “elites” subsidiárias do establishment. A remissão dos males sociais depende de uma mudança estrutural na sociedade.

Até lá, conviria não olhar a jovialidade como quem olha a árvore, sem ver a floresta. Os jovens são, antes de tudo, aliados do amanhã. Tirem as patas.

(*) Professor universitário e ex-Secretário de Cultura do Rio Grande do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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