Opinião
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26 de janeiro de 2022
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09:03

Duas eleições presidenciais: diferenças e semelhanças – 2018-2022 (por Céli Pinto)

Foto: Antonio Augusto (Ascom/TSE)
Foto: Antonio Augusto (Ascom/TSE)

Céli Pinto (*)

Neste início de ano, quando as eleições gerais começam a ocupar a atenção da mídia e dos grupos políticos, cabe lembrar as eleições de 2018 e fazer uma pergunta simples: esta será totalmente diferente da outra ou há pontos em comum? 

Elas são diferentes, mas não totalmente diferentes, o que merece a atenção, em especial dos formuladores de campanha e dos candidatos que se propõem a recolocar o país na trilha de uma racionalidade democrática minimamente aceitável.

Comecemos por lembrar as condições ótimas que deram a vitória a Jair Bolsonaro em 2018. Há uma lista, vou me ater a duas: (1) o desmonte do sistema político partidário, que teve como consequência o distanciamento e a descrença de eleitores e eleitoras do fazer da política e (2) a própria campanha de Bolsonaro.

O desmonte começa a se anunciar com as manifestações de 2013, que observaram uma particular trajetória. Começaram como protestos contra o aumento das passagens do transporte urbano e transitaram por demandas e posturas ideologicamente variadas. Tornaram-se, muito por força do trabalho da grande mídia, manifestações conservadoras, diria até reacionárias, representadas pelo chamado “cidadão de bem”, antipolítico e fundamentalmente anti-Partido dos Trabalhadores. Somou-se a isto a bem urdida Operação Lava Jato, espetacularizada por um grupo de procuradores e pelo futuro Ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Houve muitas delações premiadas de figuras previamente presas, que as trocaram por liberdade e/ ou outras vantagens. Entre muitos desmandos em nome de uma pretensa justiça, houve um momento decisivo, a prisão de Lula em abril de 2018, que o impediu de concorrer à presidência da república nas eleições de outubro daquele ano.  

Tudo isso teve um grande perdedor, o PSDB, que agiu sempre no sentido de dar guarida a todos os atos do futuro ministro da justiça, na esperança de que, tirando o PT do certame, a presidência da república voltaria às suas mãos. Aécio Neves já havia tentado um golpe em 2014, mas falhou em seu costumeiro primário e pouco honesto fazer político.  Durante 5 anos, o PSDB e seus aliados trabalharam diuturnamente para destruir o PT. No frigir dos ovos, deixaram o sistema político em frangalhos. O único partido que havia participado da chamada nova república e se manteve estruturado foi, paradoxalmente, o PT, aquele que deveria desaparecer. Mesmo com seu grande líder preso, chegou com Fernando Haddad ao segundo turno das eleições presidenciais e fez a maior bancada na Câmara de Deputados. O PSDB desandou e tornou-se mais um partido sem personalidade política, como a maioria dos 34 que circulam no Brasil. Seu candidato à presidência da república, Geraldo Alckmin, não chegou a ter 5% dos votos no 1º turno. Agora, fora do partido, trata de se cacifar como linha auxiliar para a volta do PT ao poder.

A derrota do sistema político custou muito, inclusive para o PT, que perdeu força nos estados e nas Assembleias Legislativas. Entretanto, o maior prejuízo foi a possibilidade criada pela disfuncionalidade total do sistema e pelo aparecimento de um candidato como Bolsonaro, à disposição de uma massa de eleitores, trabalhada com afinco pela mídia e por setores do judiciário, disposta a votar no que se apresentava como outsider, contra “tudo isto que tá aí”. O ex-militar, com seu jeito  rústico e violento, orgulhoso de sua ignorância,  arrogante na sua posição de quem está sempre no limiar da ilegalidade, foi capaz de interpelar vastos setores da classe média assustada, os descrentes com a política, os religiosos de muitos matizes, os milicianos e militares, bem como  as organizações de extrema-direita que se espalhavam pelo país, sem que as forças políticas democráticas se dessem conta do que ocorria. Bolsonaro era o homem certo que aparecia num momento de profunda desagregação da política brasileira. 

 A segunda condição ótima foi a própria campanha eleitoral de Bolsonaro. Dirigida especificamente contra o PT, considerado a negação de todas as aspirações do “cidadão de bem”, foi promovida através de uma até então impensada enxurrada de fakenews veiculadas pelas redes sociais. Elas se atinham em questões de cunho moral e criavam fantasias, como a da famosa mamadeira de piroca e outros absurdos repetidos candidamente pelo “cidadão de bem”. Ele sabia, como qualquer um de nós, que era uma invenção bizarra, mas pouco importava, a questão era associar o PT à imoralidade. 

Outro fator importante da campanha foi a facada em Juiz de Fora. Se ela foi verdadeira ou não pouco importa para entendermos seu significado. Mais do que transformar o ex-militar em vítima, ela serviu para tirá-lo da campanha e do enfrentamento que teria com seus adversários, especialmente Fernando Haddad. A facada permitiu a Bolsonaro não fazer campanha, não expor sua formidável ignorância e seu total desconhecimento do cargo para o qual estava concorrendo. Escondido, seus acólitos puderam fazer tranquilamente a campanha suja. 

Por fim, mas não menos importante, ainda é preciso considerar a entrada tardia de Haddad na corrida eleitoral e sua difícil condição de candidato de reposição: o que estava no lugar de Lula. Um grande quadro da política brasileira, independente de ser do PT ou não, Haddad nada pode fazer para reverter o sentimento de derrota da esquerda e dos militantes petistas com seu líder na prisão. Não havia clima, no sentido político da palavra, para ganhar as eleições presidenciais. O PT vivia o luto.

Que condições mudaram de 2018 para 2022?

Muitas coisas mudaram, os ventos estão a favor da vitória de um candidato de centro-esquerda como Lula, como as próprias pesquisas eleitorais vêm apontando repetidamente. Mas todo o cuidado é pouco para que o entusiasmo não esconda as dificuldades que serão enfrentadas. Será uma campanha muito difícil e nada está ganho.

Na comparação com 2018, a primeira coisa que salta aos olhos é que o sistema político não se reorganizou e, ainda, só resta o PT como partido articulado dos velhos tempos. Há novidades importantes, como o PSOL, que mostrou interessante vitalidade nas eleições municipais de 2020, mas ainda não tem força para se colocar em uma corrida presidencial. Se, por um lado, a desorganização pode ser computada como um fator positivo para a vitória petista (e os fiascos repetidos da chamada terceira via são mais do que provas), por outro, o atual presidente está sozinho para reunir sob suas asas armadas os deslocados, os sem partido, os militarizados, os que bordejam a ilegalidade: os mesmo de sempre. Não se pode menosprezar a força da extrema-direita que circula ao redor do presidente e seu forte aparato militar.  Quando jornalistas apressados afirmam que as Forças Armadas não entrarão em uma aventura não democrática, dois fatos históricos me vêm à mente: a confiança de João Goulart em seu aparato militar em 1964, e o fato de Augusto Pinochet ser um general da confiança de Salvador Allende em 1973. Os militares não costumam ficar do lado da democracia quando lhes é dada oportunidade de escolher.

Soma-se a isto a facada. Ela voltará sob uma nova narrativa, e agora servirá para associar o incidente ao PT ou ao PSOL. Certamente o ex-militar engolirá mais uns dois ou três camarões  atravessados, irá para o hospital de luxo no meio da campanha e a facada reinará outra vez. Pensar nisto pode parecer absurdo, mas não é. Nunca uma facada rendeu tanto na vida de uma pessoa. Algumas provocam a morte, não é o caso desta.

Também, em relação à campanha, é bom lembrar que o ex-militar tem o poder da máquina do Estado na mão, um orçamento milionário, dinheiro para distribuir a rodo para apoiadores e sua parentela frequentadora do Alvorada, sempre pronta para uma campanha suja. 

Há diferenças em relação a 2018 que podem apontar para uma vitória progressista. A primeira é a presença de Lula, livre da prisão e das acusações infundadas que pairavam sobre ele. Além de grande líder popular, Lula tem uma história de governos vitoriosos. Ao mesmo tempo, seus adversários, que poderiam ser uma alternativa a Bolsonaro, não conseguiram se criar. Falta muito para as eleições, é verdade, mas a confusão entre os candidatos da coluna do meio não projeta como possível que algum consiga unir os demais e se torne um contendor viável.  Entretanto, isto não garante que, em um segundo turno,  não estejam  ao lado de Bolsonaro para,  cinicamente, “defender o Brasil do comunismo”. Ciro Gomes já declarou, no lançamento de sua pré-campanha, que não votará em Lula no segundo turno… 

Se Bolsonaro tem a vantagem de ter a máquina pública à disposição, também tem que dar conta de um dos piores governos que o país vivenciou em sua história. Nada funcionou, tudo foi paralisado, desmoralizado, destruído. O governo trabalhou sempre contra as mais básicas necessidades da população brasileira. Acabou com programas sociais, destruiu a cultura, demoliu a educação e, o mais grave de tudo, usou todo o poder que tinha para não proteger os brasileiros da pandemia de Covid. Não foi um genocídio no sentido forte do conceito, mas foi um projeto criminoso contra 220 milhões de pessoas, cuidadosamente arquitetado a partir do Palácio do Planalto, que teve como executores o general Eduardo Pazuello e o médico cardiologista Marcelo Queiroga.   

Nos livros policiais, sempre há uma pergunta fundamental: a quem interessa o crime? A história se encarregará de responder: por que o crime interessava a Bolsonaro, ao general e ao médico? A CPI da Covid deu algumas pistas, mas há muitos interesses envolvidos, dentro da própria Comissão, para que elas possibilitem desvendar a razão de um projeto tão absurdo. Mesmo considerando os limites intelectuais, cognitivos e de saber político do grupo que circula ao redor do ex-militar presidente, é difícil entender o que ganham com o radicalismo negacionista que professam.  

Soma-se a isto o empobrecimento generalizado das camadas populares. Enquanto um pequeno grupo concentra cada vez mais riqueza, a inflação, o desemprego, o desmonte da escola pública, da ciência, da saúde, das políticas sociais, da educação de nível superior, grassam no país como projeto de governo. A questão é saber até onde as pessoas atingidas relacionam suas situações individuais com o governo. Isto depende muito das formas como a miséria, o desalento e a falta de reconhecimento são vividas.  Se forem entendidas apenas como uma tragédia coletiva, a pandemia que atinge todos “igualmente” será vista como um azar, uma manifestação de ira de divindades religiosas e o governo, ao dar uma esmola no último ano para os mais necessitados, poderá sair de vítima nesta história. A fome necessariamente não é boa conselheira.

Para concluir, há razões para pensar na forte possibilidade da vitória de uma centro esquerda organizada ao redor de Lula e do PT, mas há um longo caminho pela frente e muitas incertezas, até mesmo se haverá eleições. Não podemos esquecer que Jair Messias é Presidente da República e sua parentela, associada ao Centrão no Congresso Nacional, está no poder.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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