Opinião
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23 de outubro de 2021
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07:20

As escoras gargalham (por Céli Pinto)

Projeto “Memória Não Morrerá” levou à CPI da Covidr painéis bordados com nomes, corações, retratos, frases e símbolos que expressam solidariedade às vítimas da covid-19 no Brasil. (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)
Projeto “Memória Não Morrerá” levou à CPI da Covidr painéis bordados com nomes, corações, retratos, frases e símbolos que expressam solidariedade às vítimas da covid-19 no Brasil. (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Céli Pinto (*)

O governo Bolsonaro parece estar derretendo ao vivo e a cores frente aos nossos olhos: baixos níveis de apoio nas pesquisas de opinião; uma crise econômica que  leva dezenas de milhões de brasileiros à miséria e à total insegurança alimentar; uma CPI da Covid, que  mexeu com corações e mentes de parte significativa da população; uma política econômica  fazendo água com a fuga dos ratos do ministérios aos magotes; o mau  humor do mercado e o bom humor dos donos de dólares no exterior. Tudo coroado pelo desespero do ex-capitão, que necessita de uma reeleição para que sua parentela estendida, e ele próprio, escapem de processos que os levarão possivelmente à prisão.  Soma-se ainda a este descalabro a perversa convivência com o Centrão, cujo constante aumento do preço de seu aluguel não obedece a qualquer tipo de teto. 

Para os que defendem a democracia, as instituições e a constituição de 1988, este quadro poderia parecer otimista. O governo está fazendo água. De certa forma sim, mas a parcimônia é boa companheira nesses momentos. Vários fatores poderiam ser aqui elencados para baixar o otimismo, como, por exemplo, a manutenção de um núcleo duro do bolsonarismo em torno de 20% da população; as igrejas; os políticos que se beneficiam da distribuição pouco republicana de verbas para emendas parlamenteares e um revigorado medo da esquerda. Mas vou falar de outro tema: a Covid.

Sem dúvida, a CPI da Covid revelou  múltiplos esquemas escandalosos, apontou  a culpa do presidente da república, de seus ministros e membros graduados do governo, entre eles  militares – de generais a cabos de polícia militar estadual. Mas Bolsonaro riu. Segundo seu filho, na verdade, gargalhou do resultado da Comissão Parlamentar de Inquérito.

O presidente da república e seus ministérios da saúde, o regimental e o paralelo, riem e gargalham da Covid há muito tempo. O Kit Covid é tão falso quanto o Kit Gay que também ele inventou.  Bolsonaro e seus militares de pijama ou farda sabem muito bem disso, mas as semelhanças param aqui. O Kit Gay foi uma estratégia asquerosa, como costumam ser as estratégias da estrema-direita,  para ganhar  a eleição.  Salvo a velhinha de Taubaté, ninguém acreditava na mamadeira de piroca, mas todos os seus apoiadores e eleitores reproduziam os posts numa tentativa, bem sucedida à época, de associar a esquerda à pornografia, à ameaça à família, à pedofilia.

Já o Kit Covid tem outra natureza. Ele é igualmente uma criação que pode ter causado muitas gargalhadas no interior dos palácios presidenciais, dos ministérios e dos laboratórios militares, mas, além disto, ele iludiu milhões de pessoas, pode ter sido causa da morte de centenas de milhares e da contaminação de muita gente que sofrerá sequelas pelo resto da vida. Pessoas não se cuidavam, alguns médicos e empresas de saúde iludiam seus clientes e eles se contaminavam, sofriam, quando não morriam. 

A pergunta que não quer calar é: a quem interessa esta esbónia?  A quem interessa a defesa do Kid Covid, com cloroquina e outras drogas com a mesma   ineficácia?  Nenhum país do planeta, neste momento, defende estes medicamentos, mas Bolsonaro voltou a declarar ontem: “Eu também fui acometido  [pela Covid] , tomei hidroxicloroquina e, no dia  seguinte, estava bom. Será que é porque é barato? Ainda continua em interrogação o tratamento”( FS 22/10/2021 A6) 

É pouco razoável atribuir estas manifestações presidenciais ao fato de o presidente ser um parvo, um ignorante. Realmente “as luzes não lhe luzem”, mas ele não está dizendo isto porque acredita, sabe tão bem quanto qualquer um que milhões de pessoas que tiveram Covid leve poderiam atribuir a cura à cloroquina, caso não sofressem seus efeitos colaterais, sem que ela tivesse provocado qualquer efeito. Inúmeras pesquisas científicas davam conta da ineficácia da droga,  já na primeira metade do ano de 2020, publicadas nas mais respeitadas revistas médicas do mundo. 

O grave é que Bolsonaro não está só, e não é um povo famélico que lhe dá sustento. As pesquisas não causam qualquer constrangimento aos profissionais da saúde que formam o círculo íntimo do presidente, tampouco ao seu atual Ministro da Saúde, um individuo tão desclassificado que representa o Brasil no exterior fazendo gestos obscenos. Ontem o CONITEC ( Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS)   votou finalmente seu relatório sobre o Kit Covid e não chegou a nenhuma conclusão porque a votação terminou empatada. Houve 6 votos a favor do governo. O 13º membro, representante da ANVISA, teve que sair na hora, não se sabe se para jantar em um shopping em Brasília ou por causa de uma diarreia providencial, que o levou à cloaca mais próxima.

A CPI da Covid revelou muita coisa, mas não relevou a quem interessava a produção em massa de drogas ineficazes para a Covid.  A bem da verdade, nunca tocou neste tema.  Falou de vacinas e negociatas envolvidas, mas jamais da compra e produção da cloroquina e drogas similares. Referiu-se apenas a questões éticas relativas à prescrição da droga, como se ela tivesse surgido do nada.  Esta pergunta não poderia ter ficado sem resposta. Talvez estejam aí as escoras do governo Bolsonaro, encobrindo muito mais do que nossa imaginação consegue alcançar. As escoras podem ser, na verdade, a escória que estaria garantindo a Bolsonaro uma vitória eleitoral, ou uma permanência a qualquer custo na presidência da república em 2022. Quem viver verá.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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