Opinião
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14 de setembro de 2021
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07:33

Os mares do sul e o falcão barcelonês (Coluna da APPOA)

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Robson de Freitas Pereira (*)

Um homem é encontrado morto a facadas numa construção abandonada, em Barcelona. O encontro com o cadáver foi quase por acaso, um destes infortúnios na vida de qualquer ladrão: fugindo da polícia, perdeu o controle do automóvel e entrou construção adentro. Não chegou a ser tão espetacular quanto aquela “entrada triunfal” anos atrás (1994) quando os foragidos entraram com carro no hall daquele hotel no centro de Porto Alegre, estilhaçando os vidros das portas e parando no balcão de reservas.  Na época o melhor da cidade. 

Voltemos à capital da Catalunha. Acontece que o defunto era um riquíssimo empresário bem conhecido na cidade que todos pensavam estar realizando, há mais de um ano,  um velho sonho: viajar, sem pressa pelos mares do sul, desfrutando daquela Polinésia mítica imortalizada por Paul Gauguin.

A família, mais especificamente a viúva, não querendo a reabertura do caso, contrata os serviços de Pepe Carvalho. Assim começa a novela Os mares do sul, onde o mais importante detetive particular de língua espanhola ( para dizer o mínimo), mais uma vez faz sua investigação. Presta um serviço não somente a quem o contrata diretamente, mas a todos que o acompanham nesta trajetória de desvendar o crime e, junto com ele e suas motivações tão universais, a vida social, política e todos os embates que constituem o cerne de qualquer sociedade. 

Estamos em 1979, poucos anos depois do imorrível “generalíssimo Franco” finalmente ter deixado este mundo, passando a ser apenas mais um dos fantasmas que assombram a história de um país. O pacto de Moncloa implica que Espanha deve  assumir a democracia de uma vez por todas, custe o que custar. 

Carvalho tem escritório na Rambla, ali perto do monumento a Cristóvão Colombo. Mora em Vallvidrera, parte alta da cidade, logo depois dos nobres bairros de Pedralbes e Sarriá (sim, onde fica o estádio do Barça). Isto para situar que ele percorre Barcelona de alto a baixo todos os dias, exercitando a função de cronista das ruas desta cidade que o viu nascer. Tem uma paixão por gastronomia que deixa várias receitas ao longo de sua investigação e quase nos faz sentir o gosto da cozinha espanhola. Tantas são as receitas que já se editaram livros somente com elas.

 Além das mulheres, a quem é fiel à sua maneira (há oito anos mantém um caso com Charo), tem uma outra idiossincrasia: queima livros para se aquecer. Sem dó nem piedade. Junto com a lenha, numa mesma noite pode jogar Moby Dick e A Divina Comédia para dividirem e atiçarem fogo. Pura vingança, quase inútil, como confessa ao voltar para casa, na página 214 da edição brasileira d’Os Mares do Sul : “ …e de noite, em vão se vingar da cultura que o havia isolado da vida. Como amaríamos, se não tivéssemos aprendido nos livros como se ama? Como sofreríamos? Sem dúvida, sofreríamos menos. Gostaria de ir para um balneário cheio de convalescentes…” . Confissão de amor e desespero com as potencialidades e limites da literatura. Nos educou a sensibilidade, a relação com os outros, nos fez sonhar com paraísos futuros ou perdidos para entender ou simplesmente suportar o cotidiano. Porém, este saber que lhe atribuímos não é suficiente para antecipar as surpresas da vida. Para o bem e para o mal; pois isto só nos indica que precisamos do diálogo com os outros.

O autor que dialoga conosco, apesar de falecido em 2003, no aeroporto de Bangkok, é Manuel Vázquez Montalban. Para dar uma ideia de sua importância, Montalban é um destes raros casos onde escritor e personagem transformaram-se em prêmios literários de seu país- além de nome de rua, centro cultural e uma orquestra para formação de jovens. Em Madri, todos os anos outorga-se o prêmio Manuel Vázquez Montalban. Em Barcelona, sua terra natal, o evento Barcelona Negra, desde 2007, entrega o prêmio Pepe Carvalho a escritoras ou escritores que se notabilizaram na novela policial. Escritos não somente de língua espanhola. Além de reconhecer o trabalho do malaguenho Juan Madri (2020) e da argentina Claudia Piñeiro (2019), o premio Pepe Carvalho também homenageou James Ellroy e Joyce Carol Oates  (2021) entre outros.

Manuel/Manolo começou no início dos anos 60 sua carreira como escritor, sempre associado com sua postura política (esteve em Porto Alegre no Forum Social Mundial de 2002). Biografias, novelas históricas ou puramente ficcionais. Sempre tendo em conta um olhar crítico, com relação a sua cultura. No jornalismo, suas crônicas dissecavam as ruas e os personagens da capital da Catalunha. Só inventou o personagem Pepe Carvalho em 1972, lembrando suas referências nas histórias noir, dos anos 20 e 30 do século passado.

Os mares do sul é seu quarto livro com o protagonista e o mais premiado. Nele realiza uma síntese de análise da realidade com os meios da ficção, levando Leonardo Padura a chamá-lo de “o falcão barcelonês”, tamanha sua admiração e influência confessa para a criação de seu detetive Mario Conde. Este policial aposentado que queria ser escritor e percorre as ruas e as estações de Havana, também nos desvendando os mistérios de Cuba e dos cubanos.

Aprendemos com a psicanálise que a verdade tem estrutura de ficção. Pepe Carvalho coloca em ato esta investigação que demonstra o quanto a intimidade das ruas e dos sujeitos está articulada. E como, através de uma leitura podemos nos reconectar com o sonho e o desejo de emancipação, mesmo nos tempos mais sombrios.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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