Opinião
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3 de junho de 2011
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09:25

O tiro que não saiu pela culatra

Por
Sul 21
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Urna eletrônica com a pergunta que foi feita no referendo de 2005

Apesar do seu inesperado resultado, o Referendo sobre o desarmamento de 2005 significou uma vitória para a democracia e para a discussão sobre Segurança Pública no Brasil

Luciana Ballestrin *

Quando o eleitor foi informado que deveria decidir em outubro de 2005 os rumos do comércio de armas no Brasil, a reação foi de perplexidade. A imensa maioria das pessoas ignorava que aquela inusitada questão lançada de súbito à sociedade era fruto de um processo muito anterior e maior. O Referendo de Outubro de 2005 em nada teve a ver com conchavos entre elites, prenúncio de golpe ou algo que o valha. Foi, sobretudo, o resultado da longa luta da sociedade civil contra a violência no Brasil, e a terceira consulta popular direta da história nacional – junto aos Plebiscitos de 1963 e 1993 -, o primeiro Referendo do Brasil e o único no mundo a perguntar sobre o tema.

No século XX, as legislações brasileiras foram omissas no que se refere à regulação da compra, posse e porte de armas de fogo por parte de civis. Desde o governo autoritário de Getúlio Vargas (1937-45) passando pela Ditadura Militar (1964-1985), a Segurança Nacional esteve principalmente comprometida com o fortalecimento da indústria armamentista, defesa do Estado brasileiro perante ameaças externas, manutenção da ordem interna e auto-suficiência do poderio bélico. Por sua vez, a Segurança Pública entendida como um direito de todos e um dever do Estado foi garantida somente pela Constituição Cidadã de 1988 (Artigo 144). A ênfase na proteção individual e social em detrimento da proteção estatal trouxe Cidadania também para a área da Segurança, tradicionalmente pensada no âmbito da estratégia militar pelas Forças Armadas.

O controle de armas como uma medida fundamental para a redução da violência armada começou a ser concebido pelo trabalho comunitário e acadêmico de várias ONGs e núcleos de pesquisa, a partir da metade da década de 1990. A importância das investigações realizadas foi fundamental para o descobrimento de dois fatos: o Brasil é o país onde mais se mata por arma de fogo no mundo, mesmo não estando em guerra; as armas utilizadas nos cenários de violência são principalmente armas de pequeno porte e fabricadas no território nacional. Esta última descoberta realizada pela ONG Viva Rio derrubou um mito que os crimes no Brasil eram cometidos por armas automáticas importadas, fuzis e metralhadoras.

Em 1997, o governo federal havia sinalizado a preocupação com o registro de armas de fogo da população civil, instituindo o Sistema Nacional de Registro de Armas. Pela primeira vez se dispôs sobre o uso de armas por civis, sendo que o controle, cadastro, produção, venda e importação dos armamentos deveriam ser exercidos pelo Ministério da Justiça, como base de consulta para a Polícia Federal.

Em 1999 graças à emergência do tema na esfera pública, alguns senadores apresentaram vários projetos de lei (PLs) em direção a um controle mais efetivo de armas. Um deles, o PL 292, seria a base do futuro Estatuto do Desarmamento de 2003. Mesmo aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, este PL foi derrotado em outras Comissões, paralisado e engavetado nos anos seguintes. A partir daí, foi nítida a presença e a pressão de outro grupo organizado: os fabricantes de armas.

[Acima, uma das propagandas do grupo que pleiteava o voto
“Não”, pela continuação da venda de armas de fogo no Brasil]

A discussão só foi retomada no parlamento devido à nomeação do pesquisador Luis Eduardo Soares em 2003, uma das maiores autoridades em segurança pública no Brasil, como secretário nacional de Segurança Pública. Uma verdadeira batalha foi travada no legislativo para a elaboração e a implantação do Estatuto do Desarmamento, apoiado por figuras chaves no Senado e pelo Executivo federal.

A posição dos parlamentares e dos partidos políticos começou a ser disputada principalmente por dois grupos de interesse. De um lado, o grupo representado por diversas organizações da sociedade civil (ONGs, igrejas, associações comunitárias, movimentos populares) que haviam conquistado o apoio de vários artistas, inclusive da Rede Globo. Este grupo argumentava que para diminuir a violência armada epidêmica no Brasil e para construir uma cultura de paz era preciso reduzir a circulação de armas.

Do outro lado, a força maior veio do lobby da indústria armamentista, especialmente da Forjas Taurus (a maior indústria brasileira de armas) e da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) (a maior produtora de munições do país). A manutenção do status quo também era interessante para vários caçadores, colecionadores e desportistas. O apoio e a assessoria internacional para esse outro grupo foram dados pela tradicional Associação Nacional do Rifle dos Estados Unidos.

O Estatuto do Desarmamento – regulamentado pela Lei 10.826 que “Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), define crimes e dá outras providências” – foi aprovado em 22 de Dezembro de 2003 pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, sendo então fruto da condensação de dezenas de PLs que tramitavam juntas na Câmara dos Deputados e no Senado. Reconhecida internacionalmente como uma das legislações mais avançadas do mundo em relação ao controle de armas, o Estatuto passou a exigir um Certificado de Registro da Arma de Fogo; restringiu o porte para civis; penalizou a posse irregular, o porte ilegal, o disparo, o comércio ilegal e o tráfico internacional; proibiu a compra por menores de 25 anos; estabeleceu campanhas de anistia voluntária mediante indenização e definiu regras para a produção, comércio e transporte de armas em todo o território nacional. Fundamental para a aceleração de sua aprovação durante o processo legislativo foi uma pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro de 2003 que indicava que 82% dos brasileiros apoiavam o Desarmamento. Porém, o Artigo 35 do Estatuto, que previa a proibição do comércio de armas e munições para todo o território nacional, encontrou grande resistência parlamentar para ser aprovado. A solução foi a seguinte: submeter a referendo popular a pertinência da vigência desse artigo específico, já que o Estatuto estava assegurado.

[Proganda do “Sim”, que queria o fim do comércio de armas no Brasil]

Esse impasse foi gerado pelo cálculo dos representantes que optaram por não decidir: os custos envolvidos nesta tomada de posição eram muito altos, já que envolviam um tema controverso, com diversos interesses em jogo e que podiam afetar negativamente suas carreiras políticas. Depois de outra batalha para a definição do dia e regulação da consulta, em julho de 2005 estava autorizada a criação de duas frentes parlamentares: a “Frente Parlamentar por um Brasil sem Armas” e a “Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa”. Na primeira, filiaram-se 14,3% do Congresso Nacional, enquanto na segunda frente 23,6% dos parlamentares. Segundo os dados oficiais do TSE, a campanha do SIM arrecadou R$ 2.287.311, enquanto a campanha do NÃO teve a receita de R$ 5.726.491,95. Suas principais doadoras foram a Forjas Taurus e a CBC. A pergunta “O comércio de armas e munições deve ser proibido no Brasil?” foi respondida em outubro de 2005 por 95.375.824 eleitores brasileiros: 63,94% votaram no NÃO e 36,06% votaram no SIM. A maioria dos pesquisadores e ativistas convergiu na explicação do elemento responsável pela reviravolta da opinião pública: o impacto da campanha eleitoral para a reformulação das preferências do eleitorado.

As principais razões apontadas foram: o fracasso da campanha eleitoral pelo SIM que não conseguiu convencer o eleitor, a conversão do Referendo em um Plebiscito a favor ou contra o Governo – muito em função das denúncias de corrupção do episódio do “mensalão” – e a má formulação da pergunta que induzia à dúvida. O sucesso da campanha do NÃO, por sua vez, deu-se pela estratégia de espalhar medo na população: de que a proibição iria fortalecer os bandidos, aumentaria o comércio ilegal e tiraria do cidadão o direito de comprar uma arma. Os dois primeiros argumentos são refutáveis pelo fato de que a maioria das armas utilizadas pelos criminosos no Brasil provém de desvios do mercado legal, de acordo com a CPI das Armas de 2005. Ao implicar em uma menor circulação de armas legais, medidas restritivas de acesso a civis contribuem para diminuir tal possibilidade que origina o comércio ilegal. O terceiro argumento não se aplica ao Brasil: a compra de armas nunca foi algo reivindicado e conquistado com suor pelo povo brasileiro; simplesmente era possibilitada pela omissão da legislação. Em outras palavras, no Brasil o acesso à arma nunca foi um direito, como o é, por exemplo, nos Estados Unidos.

O importante é que a aprovação do Estatuto do Desarmamento, devido à ampla mobilização e pressão social, contribuiu para a democratização do campo da Segurança Pública no Brasil. Esse processo tem sido fortemente marcado pela parceria entre diversos segmentos da sociedade civil e diferentes níveis de governo na elaboração e fiscalização das Políticas Públicas de Segurança, especialmente através de Conselhos, Conferências e Caravanas Temáticas. De 2003 para cá, o Ministério da Justiça já recolheu meio milhão de armas – iniciativa estimulada pela Conferência das Nações Unidas de 2001 sobre Comércio Ilícito de Armas de Fogo e prevista pelo Estatuto (Artigo 31) – e o Ministério da Saúde apontou uma queda inédita em dez anos de 12% dos homicídios no país.

Ao lado do Canadá, Austrália e Inglaterra, o Brasil está na vanguarda de dezenas de países que têm revisado suas leis de armas. Essa tendência mundial conta hoje com o apoio da ONU e tem somente um objetivo: reduzir o meio milhão de mortes por armas de fogo que acontecem anualmente no mundo e que vitimam principalmente homens, jovens, não brancos e pobres.

* Luciana Ballestrin é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Autora da tese: “Com quantas armas se faz uma sociedade civil? O controle de armas de fogo no plano internacional, Brasil e Portugal (1995-2010)” (UFMG, 2010).


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