Opinião
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26 de agosto de 2012
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15:31

Estávamos lá: julgamento do Pussy Riot

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por Rachel Denber*| Fonte: Human Rights Watch | Tradução: Eli Vieira

Ficamos de pé nos degraus dentro do prédio do tribunal em Moscou – a sala de julgamentos ali perto estava lotada – ouvindo a juíza ler ao microfone sua sentença condenatória contra as três membros do grupo feminista punk Pussy Riot.

Senti um peso no meu peito com o pronunciamento. Tendo monitorado os direitos humanos na Rússia por mais de 20 anos, nunca vi esse tipo de atenção midiática, ou tamanha efusão de apoio público, para um caso político. Mas tampouco em qualquer momento esperei que as mulheres fossem inocentadas.

Enquanto a juíza continuou falando, pensei em como estavam as centenas de manifestantes a uma quadra dali, enquanto gritavam “Vergonha!” para o pronunciamento da sentença. Já tínhamos assistindo a polícia arrastar para fora dois homens que vestiram máscaras de esqui – marca registrada da Pussy Riot – em solidariedade à banda.

Minhas colegas e eu demoramos horas empurrando e nos apertando para passar por uma barricada policial e centenas de jornalistas para estar aqui. Senti-me sortuda por achar um lugar onde eu podia me apoiar na parede. Sentenças russas – lidas em voz alta por juízes – podem ser longas; esta durou quase 3 horas.

O que esse caso disse sobre o Estado de Direito e a liberdade de expressão na Rússia foi perturbador – e foi isso que a juíza disse sobre o papel que ela crê que o feminismo desempenhou neste caso.

Enquanto a juíza continuou tagarelando monotonamente, pensei sobre a lógica falha por trás da sentença. Como pode uma peripécia política crítica ao apoio da Igreja Ortodoxa Russa ao presidente Vladimir Putin ser elevada ao nível de crime de ódio – mesmo se feita numa catedral venerada? As travessuras da igreja certamente ofenderam a muitos. Mas as mulheres poderiam ter sido punidas apenas por delinquência, uma pena condizente à ofensa. Em vez disso, o governo decidiu acusá-las criminalmente, para haver possibilidade de encarceramento.

Em anos recentes, a Rússia reprimiu a liberdade de expressão. É verdade que seria incrivelmente difícil apontar qualquer envolvimento de oficiais nos espancamentos e assassinatos de jornalistas investigativos e ativistas dos direitos humanos. Mas enquanto o governo permite que existam os movimentos da sociedade civil, ele também os marginaliza, difama e chega até a ameaçá-los. O caso Pussy Riot foi uma estratégia feita para calar outros críticos com o medo.

Espantosamente, a juíza não viu “nada político” na ação da Pussy Riot. A política era, afinal, o cerne da mensagem dessas mulheres.

Em vez disso, a juíza argumentou que o feminismo, em última análise, estava no cerne da acusação de “intolerância religiosa”.

“O feminismo não é uma violação da lei e não é um crime”, disse a juíza Syrova. “Mas as ideias do feminismo não se alinham a várias religiões, incluindo a ortodoxia russa, o catolicismo e o islã. Embora o feminismo não seja um preceito religioso, seus proponentes cruzam a linha para a esfera da decência e da moral”.

E afirmar “a superioridade de uma ideologia” às custas de outra, disse ela, pode provocar inimizade, ódio e conflito. Em outras palavras, a afirmação de ideais feministas por parte das mulheres era o cerne do problema – não importa que estivessem se expressando contra o clientelismo entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa Russa.

E, é claro, que elas escolheram uma igreja como foro, usaram palavrões, vestiram-se de forma inapropriada, e coisas desse tipo.

Ao mesmo tempo, é fácil demonstrar que o feminismo é político – que as mulheres estão lutando por uma voz igual e sua parte justa do poder em seus países, em seus parlamentos, e no local de trabalho.

A juíza me desanimou novamente quando disse que exames psiquiátricos mostraram que todas as três mulheres tinham mentes sãs, mas que cada uma tinha “transtornos de personalidade brandos” que as predispuseram a “um senso exagerado de ego”, “aderência teimosa a opiniões” e outras características de desafio.

Ao menos este argumento soou familiar – uma página do velho manual soviético: discordância definida como transtorno mental brando. Também é uma tática batida para desacreditar mulheres de opinião.

A juíza acelerou para o fim de sua sentença. A Pussy Riot, disse ela, passará dois anos na prisão. Sem surpresa, mas ainda assim um choque.

A juíza terminou de ler, e a polícia acompanhou aqueles de nós que estávamos na escadaria para a sala do tribunal, 10 por vez. Cada grupo tinha certa de dois minutos – tempo suficiente para ver as três membros condenadas da Pussy Riot algemadas dentro de uma gaiola de vidro com barras no topo e para tirar a foto obrigatória. Foi profundamente bizarro – como se essas mulheres fossem peças de exibição num museu, escolhidas para ilustrar o estado surreal da justiça na Rússia quando se fala em críticas ao Kremlin ou a Putin.


* Rachel Denber é vice-diretora da divisão da Europa e Ásia central da Human Rights Watch.

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