Opinião
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7 de janeiro de 2014
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07:21

Os quilombolas e o direito a justiça tributária (por Eleandra Koch)

Por
Sul 21
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Os quilombolas e o direito a justiça tributária (por Eleandra Koch)
Os quilombolas e o direito a justiça tributária (por Eleandra Koch)

Recentemente acompanhamos as polêmicas envolvendo a proposta de isenção de Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) no município de São Paulo, para famílias de baixa renda. Tal política pública, que foi obstacularizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), parece estar ancorada numa visão de justiça tributária e social.

Nesse mesmo sentido, urge pensarmos sobre duas situações próximas a nós, envolvendo duas comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul (RS): a Família Silva, em Porto Alegre e a Chácara das Rosas, em Canoas. Ambas as comunidades foram as duas primeiras comunidades quilombolas urbanas tituladas no Brasil, com base nos direitos assegurados pelo artigo 68 da Ação das Disposições Contrárias e Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988.

Essas duas comunidades quilombolas ocupam e resistem há muito tempo em suas terras, em situações de invisibilidade social. Graças à organização dessas comunidades, e à luta que travaram, conseguiram acessar o seu direito de titulação de suas terras, enquanto remanescentes de escravos. Contudo, isso não tem redundado em suficientes políticas públicas, que sejam capazes de reverter a situação de vulnerabilidade social que vivem historicamente. Esse é o caso da situação dessas comunidades em relação ao IPTU: ambas possuem injustas dívidas, com valores consideráveis, mesmo sendo comunidades que possuem Lei Municipal que as define como Áreas Especiais de Interesse Cultural (AEIC).

Embora ajam compromissos dos poderes executivos municipais dos municípios de Porto Alegre e Canoas de propor aos respectivos legislativos municipais a remissão das dívidas existentes e a isenção dos tributos futuros, considerando o patrimônio cultural que elas representam, até hoje isso não se concretizou. Assim, essas comunidades estão sujeitas às restrições fiscais, que em muitos momentos se traduzem como um óbice para o acesso às políticas públicas imprescindíveis.

No caso da Família Silva, há ainda um agravante: um gravame de ampliação da João Caetano (no bairro Três Figueiras), no Plano Diretor Municipal, que se implantado dividiria o território quilombola ao meio. Ocorre que esse gravame (que é uma diretriz e não uma obrigação de fazer) foi gravado antes do reconhecimento e da titulação do território quilombola. Tal situação ocorreu numa tentativa de acordo com o mercado imobiliário que participou de várias tentativas de retirada dos moradores do quilombo, dessa nobre área urbana de Porto Alegre. Contudo, a suposta reintegração da posse dos detentores de título de domínio incidentes sobre o território quilombola, ancestralmente e historicamente ocupado, não está mais em questão, pois há um Decreto Presidencial que define como território quilombola, de interesse social, e estabelece o título definitivo, impenhorável e inalienável da área. Assim, o gravame perdeu seu sentido e viabilidade, contudo, ele ainda não foi retirado devidamente e se coloca como uma “espada” sobre o território quilombola.

O IPTU é uma atribuição dos poder Executivo Municipal, e a ele cabe propor ao Legislativo Municipal a remissão da dívida anterior e a isenção da dívida a partir de então. Tal atitude representa uma política pública de reconhecimento de direitos fundamentais, assegurados constitucionalmente, por três razões principais: 1) essas comunidades representam um inestimável patrimônio cultural e social, 2) a subjugação política e econômica que viveram historicamente os coloca numa situação atual de fragilidade e insegurança social, 3) cabe ao Estado brasileiro, em suas diferentes esferas, reparar a dívida histórica com essas comunidades tradicionais remanescentes da escravidão no Brasil, e, bem como propiciar a integração das mesmas nas políticas de desenvolvimento econômico e social, considerando esse contexto histórico.

Esperamos que 2014 seja o ano em que os poderes executivos e legislativos de Porto Alegre e Canoas concedam a essas comunidades, que já são reconhecidas como Áreas de Interesse Cultural, o direito a essa isenção (e justiça) tributária, que no caso de Porto Alegre, já é concedido a outras associações comunitárias.

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Eleandra Koch é cientista Social e possui mestrado em Sociologia pela UFRGS. Também é militante social e Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário-Habilitação. Antropologia no INCRA/RS. E-mail: eleandrars@yahoo.com.br.

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