Opinião
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19 de junho de 2014
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08:27

Crônica de um dia de Copa do Mundo (por Rafael Kruter Flores)

Por
Sul 21
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Crônica de um dia de Copa do Mundo (por Rafael Kruter Flores)
Crônica de um dia de Copa do Mundo (por Rafael Kruter Flores)

Era terça-feira, quase feriado. Dia de jogo da Copa em Porto Alegre. Serviço público em ponto facultativo, bancos fechados, empresas em férias coletivas, pequenos comerciantes em dúvida. Pra mim, praticamente feriado: a Universidade fechada, sem aulas. Sem clima de trabalho. Decidi viver um dia de Copa do Mundo, do meu jeito, é claro.

Já sabia que o trânsito estava em colapso. Vi a Osvaldo Aranha parada quando levei os cães para o passeio matinal no parque. Sabia também que os ônibus não seriam confiáveis. Peguei minha bicicleta e rumei para a Praça Argentina. Não que houvesse encontro da torcida hermana por lá, e sim porque era o lugar marcado para o Ato convocado pelo Bloco de Lutas de Porto Alegre. Contra a Copa. Remoções forçadas de milhares de famílias, morte de operários nas obras dos estádios, elitização do futebol e privatização de espaços públicos estavam na pauta. Já imaginava que não seria massivo, haviam poucas confirmações na chamada do facebook. Chegando perto, há duas quadras, comecei a avistar a tropa de choque. A cavalo ou a pé, espreitavam o que aconteceria. Pela postura, percebi que não aconteceria muita coisa que os preocupassem. Conversavam…o olhar despreocupado. A praça quase vazia, como em uma terça-feira qualquer. Falei com algumas pessoas e pensei sobre as razões para o esvaziamento do ato. São tantas…

Desci a João Pessoa em direção à Ipiranga. No viaduto, aí sim, clima de guerra. Não que houvesse alguém protestando – talvez dentro dos carros, socos na direção. Filas de caminhões, carros e caminhonetes do BOP, BM e todos os tipos de policiamento possíveis conviviam lado a lado com um trânsito parado. Motoristas buzinando. O som do helicóptero da BM preenchia os pouquíssimos espaços sonoros vazios do lugar. Minha magrela contornava os obstáculos, me senti livre. Chegando perto da Ipiranga tive que pegar um atalho porque o engarrafamento era espantoso. Não passava nem bicicleta. Quem eram aquelas pessoas nos carros? Para onde iam? Estavam trabalhando em dia de jogo em Porto Alegre? Por que não curtir a Copa, ou mesmo visitar a Fan Fest? Estava presas?

Peguei um atalho e…mais policiamento. Uma viatura encosta, descem brigadianos que ordenam um guri a botar a mão na parede. Sigo em frente e entro na ciclovia da Ipiranga. A partir dali, o lugar se transformaria em pouco tempo. Chegando na Borges de Medeiros, um novo mundo se abriu.

Cessam as buzinas, somem as viaturas, nem mais o som do helicóptero eu escuto. Hordas de gente feliz, ansiosa, festiva e tudo mais que há de bom descem via Borges a caminho do estádio. Rindo, cantando e gritando. Bebem cerveja. No fundo, o som do pagode ao vivo de um trio elétrico. ‘Deixo a vida me levar, vida leva eu…’ Holandeses vestidos de laranja, gremistas, colorados, brasileiros de amarelo e brasileiros de laranja. Possivelmente alguns australianos também. Todos juntos em uma mesma alegria caminham na mesma direção. Essa é a Copa, afinal? Eles têm o mesmo sonho. Aquilo é um sonho, mas como todo o sonho, é também uma ilusão. Pedalo um pouco na mesma direção. O clima é leve, mesmo que sob o olhar de atentos policiais. Ali adiante, um helicóptero pousado. Paro, tiro fotos e o casaco. Encostam dois brigadianos de moto ao meu lado, ate agora não sei se levantei suspeitas ou não. Havia uma razão para isso? Só se fosse meu semblante de espanto, e não de sonho. Dou meia volta e me dirijo a um restaurante perto dali, onde tinha um compromisso.

Depois da reunião, aproveito para almoçar e assistir o jogo ali mesmo com um colega. Na saída, escuto uma narração que vem do céu narrar um gol, mas não consigo saber de quem é: o som dos cascos da cavalaria do BOP que vem passando fala mais alto. Belos e exibidos cavalos que se prepararam meses para o trabalho. Disciplinados, se dirigem não sei pra onde, seguindo alguma orientação. Um que outro anda de lado, aproveitando que tem platéia. O jogo acabara, seria necessário novo posicionamento, penso eu. Ligo o rádio, a Holanda virou o jogo, 3 a 2. Assisto o final do jogo na Fan Fest. Queria saber como era. Na entrada, minha água sem gás é confiscada. ÁGUA SEM GÁS! Pergunto se é para me obrigarem a consumir a água do bar, e o tio que me confiscou a garrafa, um dos poucos negros que vi lá dentro fora a família desenhada na parede do posto de atendimento às crianças, me confirma: ‘eles são espertos’. Eles quem? Quem são eles? A FIFA? Tudo o que consegui em cinco minutos de Fan Fest foi ter uma água confiscada. Volto para o restaurante onde deixei a bicicleta. Vou pra casa, penso.

Na passagem pelos modernos prédios da Justiça Federal em recesso, dois operários trabalham no andaime. Não era feriado, não era dia de festa? O futebol é uma festa, nós brasileiros sabemos isso mais do que ninguém. A Copa é uma festa. A Copa é uma ilusão. Pedalando novamente pela Ipiranga, mais surpresa: pista livre. Não há carros circulando na Ipiranga, e alguns motoqueiros da PRF fecham as perpendiculares. Vem aí uma autoridade, pensei. Mas não vi. ‘O Brasil também precisa de uma revolução’ está escrito no leito do arrio Dilúvio. O que será do futebol no processo revolucionário? De quem é o futebol?

Muitas reflexões na cabeça de volta pra casa, dentre elas sobre se alguma seleção poderá deter a Holanda. Não simpatizo muito com a Holanda. E as remoções forçadas? E as famílias da Avenida Tronca que vão perder suas casas? E os trabalhadores nos andaimes, e os que morreram para erguer os estádios? Por que não vieram pra festa da Copa? Há algum tempo uns filósofos falavam em ocultamento de contradições. Por que precisamos esconder algumas coisas para viver outras? Será tão insuportável assim lidar com tudo o que existe, ou, como se diz por aí, Copa pra quem?

Já em casa, me apresso pra escrever logo, antes que passe o clima, antes que passe a Copa. Afina de contas, é só um mês. E depois?

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Rafael Kruter Flores é Doutor em Administração/UFRGS.

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